
No começo do século passado, havia uma tirinha que adorava culpar o queijo pelos pesadelos durante a noite. “Dream of the Rarebit Fiend” (algo que podemos traduzir livremente para Sonhos do viciado em torrada galesa), de Winsor McCay, estreou em 1904 em um jornal de Nova York. O rito era sempre o mesmo: alguém exagera no Welsh rarebit (torrada coberta por molho de queijo), adormece e cai numa maluquice assustadora; no último quadro, acorda suando frio e atribui tudo ao queijo. A série emplacou de imediato e ajudou a cristalizar uma crença popular entre norte-americanos de que o queijo puxa pesadelos.
Um século depois, um grupo de pesquisadores volta a essa intuição popular com mais cuidado do que humor. A pergunta não é apenas se queijo causa pesadelos, mas por que tantas pessoas acham que certos alimentos “estragam” o sonho: seria um efeito direto do alimento no cérebro, um desconforto corporal que se infiltra no sono, a bagunça do próprio sono induzida pelo que e quando se come, ou apenas uma boa história que sobreviveu ao tempo?
Como o estudo foi feito?
Para organizar essa bagunça, os pesquisadores aplicaram um inquérito on-line, com desenho transversal, em cerca de mil estudantes de Psicologia. Tudo foi autorrelatado: qualidade de sono, frequência e tom emocional dos sonhos, pesadelos, hábitos de comer à noite, sintomas gastrointestinais, sintomas de ansiedade/depressão, além de sensibilidades alimentares como “intolerância à lactose”, “intolerância ao glúten” e “alergias”. Os instrumentos clássicos de sono e pesadelo foram adaptados para o estudo e criaram uma medida simples da crença de que comida altera o sonho.
Dois achados brutos já começam a elucidar bem essa história. Primeiro, 40% dos participantes afirmaram que comer certos alimentos ou comer tarde mexe com o sono (para melhor ou pior). Segundo, bem menos gente do que esperado – apenas 5,5% – disse notar que isso mexe especificamente com o sonho. Entre os poucos que percebem efeito nos sonhos, os suspeitos são recorrentes: doces e laticínios aparecem no topo da lista de “puxadores” de sonhos bizarros ou perturbadores.
Quando se sai da percepção e se olha para o modelo estatístico proposto pelos autores, o desenho fica mais fisiológico do que folclórico. Pesadelos e sonhos com tonalidade mais negativa se associam com pior qualidade de sono, comer no período noturno e, sobretudo, mais sintomas gastrointestinais. Pessoas que se declaram intolerantes à lactose relatam mais pesadelos; mas, quando os modelos estatísticos consideraram os sintomas gastrointestinais e ansiedade/depressão, o elo direto com “lactose” enfraquece, sugerindo que o caminho principal passa pelo desconforto corporal que fragmenta o sono e “contamina” o sonho.
O que isso significa (e o que não significa)?
Significa que a velha piada das tirinhas do século XX tem um fundo plausível, mas não direto. Para uma minoria de pessoas, especialmente as com baixa tolerância a laticínios e o hábito de comer tarde, o queijo pode ser parte de uma cadeia muito prosaica: digestão difícil, gases, refluxo, microdespertares, sonho pior. Para a maioria, não há evidência de um efeito direto e universal do queijo sobre pesadelos.
Também significa que horários podem importar para algumas pessoas. Comer no fim da noite, sobretudo refeições pesadas, pode piorar o sono de alguns. E sono fragmentado é combustível de conteúdo onírico mais aversivo. O estudo ainda sugeriu que comedores intuitivos (eles usaram uma escala específica para isso) tendem a relatar mais recordação e menos negatividade nos sonhos.
Agora, o que não significa. Não dá para dizer, a partir desse desenho, que remover queijo acabará com pesadelos. O estudo é transversal, baseado em autorrelato e em instrumentos adaptados; não mede ingestão real nem confirma clinicamente intolerâncias e alergias.
Ainda assim, diversos veículos de comunicação noticiaram o estudo da seguinte forma “Comer queijo pode causar pesadelos, sugerem cientistas”, “Novo vilão do sono? Queijo está associado a pesadelos”, “Comer queijo à noite pode dar pesadelos? Este estudo diz que sim” e algumas outras variações. E, curiosamente, ninguém noticiou que o comer intuitivo pode ajudar a ter noites de sono melhores – fazendo deste estudo, então, mais um grande exemplo de mau uso da divulgação de conhecimento científico pela grande mídia.
Para a atuação do nutricionista, na prática, o recado é simples e útil. Se alguém falar “toda vez que como queijo à noite, tenho pesadelos” (especialmente se influenciado pelas notícias), vale investigar o contexto antes de concordar com ela: há sintomas gastrointestinais? qual o horário da última refeição? como é a qualidade do sono no geral? Em caso de suspeita de baixa tolerância à lactose, faz sentido encaminhar para confirmação diagnóstica.
Todos os dias surgirão alimentos vilões e heróis, e somente com a adequada interpretação do conhecimento científico que conseguimos escapar das narrativas fáceis, para colocarmos a Nutrição em prática com ética e foco no cuidado verdadeiro com os pacientes.
Referência bibliográfica:
Nielsen, T., Radke, J., Picard-Deland, C., & Powell, R. A. (2025). More dreams of the rarebit fiend: food sensitivity and dietary correlates of sleep and dreaming. Frontiers in psychology, 16, 1544475. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2025.1544475