
Entender a etimologia das palavras importa; mas também o uso que elas vão adquirindo. Embora possa parecer “bonito”, integrativo tem sido usado de forma complicada na área da saúde. Começando pelo dicionário:
Integral – “ser uma parte essencial de algo; incluído como parte de algo, em vez de ser fornecido separadamente”
Integrativo – “inclusivo; que introduz algo (?) em um conjunto”
Os dois termos parecem semelhantes e talvez pudessem ser usados de forma intercambiável. Mas integrativo não traz apenas o sentido de ver como um todo, e sim a incorporação de práticas alternativas e complementares naquilo que vem sendo chamado de medicina integrativa.
O seu uso não implica numa especialidade médica existente, não é correto divulgar que se é especialista em medicina integrativa – porque isto não existe. E também não existe Nutrição Integrativa. Não como abordagem legítima, não como prática séria, não como ciência. Existe, sim, uma construção de fachada vendida como proposta inovadora para capturar justamente aquilo que deveria ser o fundamento de qualquer prática nutricional minimamente responsável: o olhar integral.
Muitos tentam justificar as práticas alternativas e complementares mencionando que foram incluídas no SUS, mas isto não quer dizer que tais práticas tenham fundamento científico [1]; assim como abrir uma associação por exemplo não quer dizer que tal coisa tem comprovação científica. Há uma série de discussões problematizando isso (veja a lista de sugestões de leitura ao final) – alertando inclusive para o fato de que o Brasil desperdiça recursos com tais terapias.
Para além desta questão, há quem justifique o “integrativo” pela “consideração da pessoa e saúde por inteiro”, mas ver o ser humano como um todo não é uma inovação, é a essência da Nutrição. É o que sustenta qualquer intervenção que pretenda de fato gerar benefício real para alguém. Comer não é a fisiologia isolada, nunca foi. Envolve ambiente, cultura, história familiar, experiências emocionais, redes sociais (as de verdade, não aquelas da internet), rotinas, acessos, preferências e até mesmo crenças pessoais. Buscar o equilíbrio e adaptar planos alimentares dentro dos contextos singulares de cada paciente é simplesmente o que a Nutrição faz – ou, pelo menos, deveria fazer. O que alguns vendem hoje como “diferencial” com o rótulo de “integrativo” é, na verdade, a obrigação básica e ética do nutricionista.
Mas há um mercado sempre pronto para transformar o óbvio em produto, e o cuidado legítimo em uma venda abusiva. Surge então a “Nutrição Integrativa”, ornamentada com práticas alternativas desconectadas da base científica, e embalada com o apelo emocional de “olhar o paciente por inteiro”, como se isso fosse novidade. Não é novidade. É oportunismo.
É claro que há, sim, um problema grave dentro da própria Nutrição. E exemplos concretos ilustram bem essa realidade: em diferentes situações clínicas, já foi prescrito a exclusão completa de carboidratos a pacientes com diabetes, como se a glicemia pudesse ser controlada simplesmente pela supressão de um grupo alimentar; em outros casos, pacientes com restrição de potássio receberam orientações para eliminar todas as frutas, verduras e legumes da dieta, mesmo diante de constipação severa, como se a função intestinal pudesse ser desconsiderada. Não se tratam de episódios isolados, mas de manifestações recorrentes de uma formação deficiente, que se estrutura desde o ensino básico e se perpetua ao longo da trajetória acadêmica, incluindo as pós-graduações.
O que estamos vendo não é apenas o oportunismo de quem vende a “integração” mágica. Estamos assistindo ao desdobramento lógico do que Gyorgy Scrinis chamou de “nutricionismo”, uma lógica reducionista que fragmentou o alimento em nutrientes isolados e empurrou a prática nutricional para uma engenharia simplista de adições e subtrações bioquímicas. Enquanto a Nutrição foi se perdendo nessa contabilidade pobre de macronutrientes, espaço se abriu para que outros ocupassem o vazio: promotores de terapias não validadas, defensores de “práticas milenares” recicladas com um discurso moderno, e instituições que se travestem de científicas vendendo “equilíbrios energéticos” misturados doutrinas sem respaldo científico consistente.
Talvez, se quisermos forçar uma provocação, possamos até considerar o uso da expressão Nutrição Integral. Mas talvez o problema não esteja na ausência desse termo, e sim no fato de que isso deveria ser, desde sempre, apenas Nutrição. Quando precisamos criar adjetivos para resgatar o que deveria ser o ofício original, é sinal de que nos perdemos demais no caminho.

Apenas Nutrição? Mas e a Nutrição Comportamental?
A Nutrição Comportamental não nasceu do oportunismo. Ela não parte de tradições esotéricas nem de adaptações improvisadas de “saberes milenares”. Nasceu, sim, da ciência. De um corpo robusto de evidências acumuladas nas últimas décadas, vindas da psicologia, da neurociência, das ciências do comportamento e, claro, da própria Nutrição, que lentamente passou a compreender que o ato de comer não pode ser reduzido a cálculos de ingestão e gasto calórico. As teorias e modelos que sistematizamos para trabalhar a mudança de comportamento alimentar na Nutrição Comportamental (TCC, DBT, entrevista motivacional, comer intuitivo, etc) já estavam publicadas, avaliadas, em inúmeros estudos – mas não acessíveis e “traduzidas” para o trabalho do nutricionista em geral.
O problema é que o nutricionista clássico (esse mesmo que ainda prescreve retirada indiscriminada de frutas e legumes) nunca foi treinado para lidar com comportamento. E a Nutrição Comportamental veio justamente ocupar essa lacuna técnica e conceitual, trazendo ferramentas de manejo, escuta e intervenção que não fazem parte da formação tradicional. Aqui não se promete equilíbrio místico. Promete-se qualificação profissional. E talvez por isso incomode tanto: porque obriga o nutricionista a encarar o quanto sua prática técnica se tornou limitada diante da complexidade real dos pacientes.
Importante dizer, e fazemos questão de reforçar: nunca se propôs no Instituto Nutrição Comportamental a criação de um “título” de nutricionista comportamental. Não há necessidade. Nutrição Comportamental é uma estratégia que o profissional qualificado aprende a usar, e simplesmente usa. Não há medalha, não há necessidade de dizer ao paciente “eu trabalho com comportamento”. O paciente não precisa saber disso. Ele precisa sentir o efeito. E o efeito é o manejo cuidadoso da relação do indivíduo com a comida e com o corpo.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
- Riera, R., Pacheco, R. L., Hosni, N. D., et al. (2019). O que as revisões sistemáticas Cochrane dizem sobre o uso das 10 novas práticas de medicina integrativa incorporadas ao Sistema Único de Saúde. Diagnóstico & Tratamento, 24(1), 25–36.
LEITURAS RECOMENDADAS
- Pasternak, N., & Orsi, C. (2019, novembro 28). Brasil desperdiça recursos com terapias alternativas. Jornal da USP. https://jornal.usp.br/artigos/brasil-desperdica-recursos-com-terapias-alternativas/
- Pasternak, N. (2019, maio 18). Medicina integrativa: melhor de “dois mundos”? Revista Questão de Ciência. https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/questao-de-fato/2019/05/18/medicina-integrativa-melhor-de-dois-mundos
- Bacchi, André D. Afinal, o que é Ciência?: …e o que não é. Contexto, 2024.
- Bacchi, André D. Manual Prático Do Picareta Em Saúde. Clube de autores, 2024.