
A família é, em muitos casos, a principal engrenagem por trás da alimentação cotidiana. Dinâmicas familiares podem determinar não apenas o que se come, mas como, quando, com quem e até mesmo com que sentimentos se come. Mesmo quando o foco do atendimento é individual, o nutricionista precisa considerar que comer raramente é um ato isolado — ele carrega a marca de interações, conflitos e alianças que se formam ao redor da mesa ou, por vezes, na ausência dela.
A ideia de que a influência familiar na alimentação é relevante apenas na infância e adolescência é, no mínimo, rasa. Ainda que o envolvimento direto pareça menos evidente na vida adulta, a maioria das pessoas mantém vínculos relacionados à comida com seus familiares, seja por meio de refeições compartilhadas, heranças de hábitos, dependência financeira ou emocional. Esse cenário ganha ainda mais relevância quando observamos que, entre 2012 e 2022, o número de adultos jovens que permanecem na casa dos pais cresceu 137%1, prolongando o tempo de convivência e, consequentemente, a influência familiar sobre comportamentos alimentares mesmo em fases tradicionalmente associadas à autonomia.
Mas mesmo aqueles que vivem sozinhos frequentemente carregam consigo padrões construídos em anos de convivência familiar, internalizados de tal forma que moldam sua relação com o alimento até na ausência do outro.
Na organização doméstica, papéis e tarefas relacionadas à comida são distribuídos e, muitas vezes, carregam implicações de gênero, autoridade e cuidado. Alguém trabalha e garante o dinheiro que permitirá as compras. Outro alguém escolhe o que será comprado, e nem sempre é a mesma pessoa que executa a compra em si. Há quem organize os alimentos ao chegar em casa, quem se ocupe da higienização das frutas e verduras, quem cozinhe, quem lave a louça. Num primeiro momento, parecem funções operacionais, mas cada uma dessas ações revela hierarquias e afetos que têm impacto direto no comportamento alimentar dos indivíduos.
O espaço da refeição também é carregado de significados. A mesa, quando usada para as refeições, pode ser um lugar de encontro ou de tensão. Há famílias em que o momento da refeição exige silêncio ou subordinação. Outras, em que ele se desfaz diante de uma televisão ligada ou de celulares sobre a mesa. Há quem sirva os outros antes de si, quem nunca se sirva, quem aguarde rituais religiosos ou ordens tácitas para começar a comer. Cada um desses detalhes ajuda a compor o cenário em que a alimentação acontece – e podem ser fundamentais para um entendimento maior do nutricionista.
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Essa observação se torna ainda mais necessária diante de contextos de conflito. Discussões familiares podem transformar refeições em momentos horríveis, silenciosos ou não. Quando há brigas ou desavenças, a comida pode assumir um papel de mensagem: negada, exagerada, ignorada, usada como punição ou como forma de consolo. Em ocasiões festivas, por outro lado, o envolvimento coletivo na preparação e no consumo dos alimentos muitas vezes revela traços culturais e afetivos que podem se perdem quando o foco está apenas “no que se come”.
Indo um pouco mais além, não basta entender a dinâmica do paciente com sua família — é preciso compreender também a dinâmica da família com o paciente. Trata-se de uma via de mão dupla: o modo como o paciente responde aos padrões familiares e o quanto a família está disposta (ou não) a adaptar seus próprios comportamentos quando metas alimentares são traçadas.
Essa relação pode ser marcada por afeto, cumplicidade e apoio, mas também por tensões, desdém e ressentimento. Imagine, por exemplo, um filho adulto, que já mora fora para estudar, e volta à casa dos pais apenas aos finais de semana. A mãe, com carinho, prepara um prato tradicional da infância, o mesmo de sempre. Mas ele recusa, comenta com ironia que agora só come comida “leve”, critica o excesso de gordura ou a falta de proteína, e acaba preparando algo “mais adequado” para si. A recusa, embora disfarçada de autonomia, pode ser recebida como rejeição – não apenas da comida, mas da figura da mãe, do tempo que ela dedicou àquela preparação, da história comum que aquela receita carregava. O impacto não está apenas no prato deixado de lado, mas na atmosfera que se cria à mesa, o afastamento, o mal-estar.
Situações semelhantes ocorrem em casais. Um marido que enxerga a esposa como responsável natural pelas refeições, exigindo pontualidade e variedade, sem envolver-se no processo, pode reforçar padrões desgastantes. Mas o oposto também é verdadeiro: hoje, muitos homens são os únicos responsáveis pela alimentação da casa. E isso pode gerar novas configurações, algumas mais equilibradas, outras marcadas por expectativas igualmente rígidas, como o desejo de reconhecimento constante. Em todos esses casos, o comportamento alimentar do paciente não é um reflexo isolado de sua vontade, mas também uma resposta a essas microdinâmicas afetivas, simbólicas e estruturais do lar.
Para o nutricionista, isso exige um olhar atento e uma escuta capaz de captar nuances. Afinal, ao pedir que alguém mude sua alimentação sem entender o lugar que essa alimentação ocupa dentro da família, pode-se inadvertidamente criar mais conflito do que solução. Esse olhar é ainda mais necessário quando se considera que, muitas das vezes, não é o paciente que precisa mudar sozinho, mas o ambiente ao seu redor que precisa ser incluído no processo de mudança. Em situações em que há sofrimento relacionado ao comer, essa sensibilidade é indispensável.
O tema do Dia Mundial de Conscientização dos Transtornos Alimentares de 2025 traz uma reflexão nesse sentido ao falar sobre a necessidade de ampliarmos o nosso apoio à família desses pacientes. E sim, estamos falando de extremos disfuncionais do comportamento alimentar, mas hoje as nuances do comer transtornado estão na maioria dos lares brasileiros e podemos aprender com os transtornos alimentares para trazer um cuidado ampliado em diversos contextos.
Uma revisão recente2 sobre o funcionamento familiar nos transtornos alimentares trouxe alguns insights interessantes:
- Diferenças de percepção entre pacientes e familiares
Pacientes com transtornos alimentares costumam perceber sua família de forma mais disfuncional do que seus pais percebem. Isso se aplica a áreas como comunicação, papéis dentro da casa, envolvimento afetivo e controle. Há indícios que essas diferenças são particularmente marcadas entre os pacientes e suas mães, e menos intensas em relação aos pais. Essa divergência não aponta necessariamente culpa ou distorção, mas sim modos distintos de vivenciar as mesmas dinâmicas. Para o nutricionista, é um lembrete de que toda história tem dois lados e precisamos estar cientes dessa realidade quando pudermos escutar apenas um deles.
- Funcionamento familiar e gravidade dos comportamentos
Há uma associação direta entre pior funcionamento familiar e maior gravidade dos comportamentos transtornados. Famílias com baixa coesão, rigidez excessiva, comunicação ineficaz ou envolvimento afetivo precário tendem a abrigar pacientes com quadros mais intensos e persistentes. Esses dados reforçam a importância da atenção para além do indivíduo, para que seja ponderado quando será necessário trazer a família para dentro do tratamento (e, certamente, isso não se aplica apenas para comer transtornado – podemos imaginar diversos quadros clínicos que demandam atenção específica no plano alimentar que podem precisar da colaboração familiar: doença renal crônica, doenças intestinais, diabetes, alergias, intolerâncias…).
- Reorganizações familiares durante o tratamento
A melhora alimentar nem sempre caminha junto com a melhora familiar — ao menos não de imediato. No contexto dos transtornos alimentares, a revisão mostrou que, durante o tratamento, especialmente em contextos estruturados como a terapia familiar, pode haver piora temporária em indicadores de funcionamento familiar, como comunicação e resolução de conflitos. Isso pode acontecer porque o funcionamento dos transtornos alimentares pode alimentar uma estabilidade frágil, e a atenuação dos seus sintomas expõe desequilíbrios que estavam sendo sustentados silenciosamente. Fora desse contexto, isso também pode acontecer, de forma mais sutil, com situações mais rotineiras: pense em uma paciente que pediu para a mãe comprar mais frutas para aumentar o seu consumo. Entretanto, a mãe nota que as frutas estão estragando e não estão sendo consumidas – certamente isso fará com que a disposição dela para ajudar a filha com suas metas seja afetada, novos sentimentos apareçam na paciente e, de algum modo, a forma como ela lida com o seu objetivo de comer mais frutas pode mudar.
Como já falado em diversas oportunidades, a Nutrição Comportamental não almeja que o nutricionista “dê uma de terapeuta familiar”, mas ele precisa no mínimo entender todos os fatores que afetam diretamente suas orientações e as metas que traça com o paciente, para, ao menos, estar preparado para propor novas soluções e reorganizar o rumo do acompanhamento.
O Dia Mundial de Conscientização dos Transtornos Alimentares, obviamente, é para falar dos transtornos alimentares. Entretanto a temática deste ano foi um irresistível convite para olharmos além.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- Kantar IBOPE Media. (2022). Todo o tempo do mundo: Para além da idade (Data Stories, Ed. 28). Kantar IBOPE Media. https://www.kantaribopemedia.com/download-beyond-age-2022/
- Rienecke, R. D., Trotter, X., & Jenkins, P. E. (2024). A systematic review of eating disorders and family functioning. Clinical psychology review, 112, 102462. https://doi.org/10.1016/j.cpr.2024.102462