
“Da boca para fora” costuma significar falar sem compromisso. Mas aqui, vale o trocadilho: talvez, no contexto da Nutrição, possamos ressignificar o da “boca para fora”. Classicamente, estaríamos falando do profissional que fala muito e se responsabiliza pouco — slogans vazios, promessas impossíveis, diagnósticos morais disfarçados de orientação. Porém podemos pensar que o nutricionista “da boca para fora” seja aquele que enxerga o que acontece para fora da boca: como o alimento chega (ou não) ao prato, quem cozinha, com que tempo, com que dinheiro, com quais medos, símbolos e rotinas; entende que cada mordida carrega logística, afeto, cansaço, crenças e circunstâncias. Reconheço que essa dicotomização é até infantil, mas no Dia Mundial da Alimentação ela surge como um lembrete que antes de qualquer nutriente ser absorvido, o alimento precisa chegar às pessoas, ser possível na vida delas e fazer sentido em seu contexto
O nutricionista da boca para fora “sem compromisso” adora sentenças redondas: “basta querer”, “força de vontade é tudo”, “quem quer dá um jeito”. Fala com a autoridade de quem veste jaleco branco para mimetizar a autoridade do médico, mas terceiriza a realidade para “a disciplina” do paciente. Quando ouve “não consegui”, enxerga preguiça onde há exaustão; vê desorganização onde cabem dois empregos e quatro horas de transporte; prescreve “mix de nuts e frutas secas” para quem não consegue comprar feijão para o mês inteiro; recomenda “ir na feira” para quem trabalha de segunda a segunda. Pode parecer inofensivo, mas pode ser devastador.
Porque nossa fala carrega selo de profissão, e mesmo quando dita a uma única pessoa, circula: vira conselho no almoço de família, legenda de Instagram, regra de ouro no grupo da academia. Ao repetir “só depende de você”, a mensagem não atinge só quem está na frente; planta uma ideia que viaja com a assinatura implícita de “um profissional disse”.
O nutricionista da boca para fora ressignificado atua em outro âmbito. Antes ver exames de dosagem de vitaminas, pergunta por horários, utensílios, mercado mais próximo, quem decide a compra, qual é o prato preferido da casa, como alguns alimentos são vistos, qual notícia sobre saúde assustou na semana. Em vez de oferecer a versão ideal de todos os processos, negocia a versão possível de alguns passos: trocar o impossível pelo viável hoje, reduzir dificuldades de amanhã, criar rotas de fuga para os dias complicados. Se o tempo é curto, encurta o preparo; se a ansiedade sobe, ajuda a construir alternativas sem criticar o alívio que a comida já dá. E, sobretudo, cuida da linguagem utilizada profissionalmente: evita rótulos que propagam estigmas, descreve comportamentos em vez de julgar pessoas, substitui “falta de vergonha” por “barreiras mapeadas”.
Há quem trabalhe com atletas, com empresas, com transtornos alimentares, com crianças, com idosos, com gestão de serviços. E essa a diversidade de escopos não nos isenta da consciência de contexto. Mesmo quando atendemos quem tem amplo acesso a alimentos, a forma como falamos precisa reconhecer que isso não é universal. Quem nos escuta não vive sozinho no mundo. Ajustar linguagem é parte do cuidado: trocar “qualquer um consegue” por “vamos construir um caminho que caiba na sua vida”; substituir “é só planejar” por “vamos planejar levando em conta seu turno, seu trajeto, sua cozinha”; abandonar “você faz tudo errado” por “vamos aprender o que você já faz de interessante”.
Quando a gente ajusta a fala, mudamos o efeito cascata. Uma orientação que respeita limites reais ensina a pessoa a se respeitar — e é isso que ela leva adiante quando conta para a amiga, para a mãe, para o colega: que cuidado não é teste de caráter; é uma prática que pode ser possível. O contrário também vale: discursos que romantizam sacrifício e vendem disciplina como panaceia reforçam vergonha, silenciam dificuldades e perpetuam um ambiente onde pedir ajuda parece fraqueza. Por isso, responsabilidade profissional não termina quando encerramos um atendimento; ela continua em cada conversa que ecoa depois.
O Dia Mundial da Alimentação nos convoca a discutir sobre a alimentação no mundo – e mesmo que, individualmente, isto não seja uma pauta presente no cotidiano de muitos nutricionistas, podemos reconhecer a realidade do mundo onde atuamos e optar pelo tipo de nutricionista da boca para fora que queremos ser. Que o nosso “da boca para fora” seja um compromisso com tudo que acontece do lado de fora da boca.