Ao longo das últimas décadas, diversos alimentos foram apresentados como verdadeiras “curas milagrosas”. Manchetes de jornais, revistas de saúde e influenciadores digitais ajudaram a consolidar a ideia de que bastaria incluir um ingrediente no prato para prevenir doenças, emagrecer ou até conquistar a longevidade. Esse fenômeno não é novo: ele se encaixa em uma tradição histórica de busca pela panaceia, a cura universal que atravessa mitos, religiões e a própria história da medicina [1].
No entanto, quando olhamos com atenção, percebemos que muitos desses alimentos foram promovidos com base em evidências frágeis, extrapolações ou interpretações equivocadas de estudos científicos. Vamos investigar alguns deles:
Abacate e a promessa de emagrecimento e saúde cardiovascular
O abacate tornou-se um dos maiores símbolos da alimentação saudável. Foi amplamente divulgado como “a gordura boa que protege o coração” e como aliado no emagrecimento. Essa popularidade se sustentou em estudos observacionais que mostraram associações entre o consumo de gorduras insaturadas e a redução do colesterol LDL, frequentemente interpretados como prova de efeito direto do alimento [2-4]. No entanto, a ciência demonstrou que tais associações não podem ser extrapoladas para afirmar causalidade [5-7]. O contexto alimentar, a qualidade geral da dieta e o estilo de vida foram frequentemente ignorados, transformando o abacate em uma espécie de solução mágica para problemas complexos. Ainda que seja um alimento nutritivo, a ideia de que sozinho poderia promover emagrecimento ou blindar o coração reflete muito mais um fenômeno cultural de panaceia do que uma realidade científica.
Chia e o mito da semente que emagrece
A chia ganhou notoriedade a partir de meados da década de 2010, quando foi apresentada como um “segredo milenar asteca” capaz de controlar o apetite e favorecer a perda de peso. Grande parte desse entusiasmo foi sustentada pela sua capacidade de formar um gel no estômago ao entrar em contato com líquidos, o que supostamente aumentaria a saciedade. No entanto, ensaios clínicos posteriores não encontraram efeitos significativos sobre o emagrecimento ou sobre fatores de risco cardiometabólico [8-10]. A narrativa da chia também se apoiava em comparações exageradas, como a afirmação de que teria “mais ômega-3 que o salmão”, desconsiderando que a forma de ômega-3 presente na semente (ALA) possui baixa conversão para os ácidos graxos ativos EPA e DHA. Assim, o consumo da chia, embora benéfico como fonte de fibras, foi transformado em símbolo de emagrecimento sem que houvesse base científica consistente para isso.

Óleo de coco: de “cura natural” a risco cardiovascular
O óleo de coco foi promovido com intensidade a partir de 2012 como um alimento funcional capaz de auxiliar na perda de peso, melhorar o funcionamento da tireoide e até combater doenças neurodegenerativas. A justificativa mais repetida era a presença de ácido láurico, também encontrado no leite materno, o que lhe conferiria supostos benefícios imunológicos. Entretanto, revisões sistemáticas demonstraram que seu consumo não promove perda de peso significativa e pode aumentar o colesterol LDL devido ao seu alto teor de gorduras saturadas [11]. A mídia e a indústria de suplementos, porém, apresentaram o óleo de coco como alternativa superior a outros óleos vegetais, ignorando as recomendações de sociedades médicas e cardiológicas que alertavam para os riscos.
Spirulina: o “alimento do futuro” sem comprovação robusta
A spirulina foi muitas vezes descrita como “o alimento mais nutritivo do mundo” e ganhou ainda mais destaque quando associada à narrativa de que seria utilizada pela NASA em missões espaciais [12]. A promessa incluía melhora da imunidade, aumento da energia e até efeitos antioxidantes capazes de retardar o envelhecimento. Porém, grande parte dos estudos que sustentaram tais alegações foi realizada em modelos animais ou em condições laboratoriais, sem evidência clínica robusta em humanos [13-15]. Além disso, a biodisponibilidade real dos compostos atribuídos à spirulina é limitada, e há risco de contaminação por toxinas e metais pesados em suplementos de procedência duvidosa. Assim, a spirulina foi incorporada ao imaginário popular como símbolo de saúde plena, mas carece de comprovação científica que justifique tamanha reputação.
Quinoa e o status de “grão perfeito”
Apresentada como o “grão sagrado dos Andes”, a quinoa se tornou tendência mundial entre 2013 e 2019, descrita como mais nutritiva do que qualquer outro cereal. A narrativa destacava seu conteúdo proteico superior e o fato de conter todos os aminoácidos essenciais, o que levou muitos a considerá-la substituto da carne. Contudo, embora seja de fato uma boa fonte de proteínas vegetais e fibras, a quinoa não é insubstituível e seus benefícios não diferem radicalmente de outros alimentos comuns, como feijões e arroz integral [16-17]. A elevação da quinoa ao status de superalimento resultou muito mais de estratégias de marketing e do apelo a uma origem “ancestral” do que de provas científicas de superioridade.
Vinagre de maçã: o detox que nunca existiu
Entre 2015 e 2025, o vinagre de maçã consolidou-se como um dos remédios caseiros mais promovidos na internet. Influenciadores e celebridades recomendavam seu uso em jejum para “secar a barriga”, controlar a glicemia e até “desintoxicar o corpo”. Alguns estudos apontaram reduções discretas de peso ou de glicemia, mas os efeitos foram mínimos e frequentemente associados à diminuição do apetite causada pela náusea induzida pelo consumo. A ideia de “detox” promovida pelo vinagre não encontra respaldo fisiológico, já que o organismo já possui sistemas próprios de desintoxicação, como fígado e rins. Além disso, seu consumo frequente pode trazer efeitos adversos, como erosão dental e irritação gastrointestinal [18-20].
Por que sempre buscamos uma panaceia?
A atração por alimentos transformados em “curas milagrosas” não é um fenômeno moderno isolado. Ele faz parte de uma tradição muito mais antiga: a busca por uma panaceia, um recurso único capaz de eliminar todos os males. Desde a mitologia grega, quando a deusa Panakeia simbolizava a promessa da cura universal, a humanidade alimenta a esperança de que um único remédio (ou, no caso contemporâneo, um único alimento) possa trazer ordem ao caos da doença e da incerteza [1].
No contexto da nutrição, essa busca reflete um anseio coletivo por controle. A alimentação é um dos poucos aspectos da saúde sobre os quais acreditamos ter poder direto de decisão, e isso abre espaço para narrativas sedutoras. Um alimento apresentado como solução definitiva para emagrecer, prevenir o câncer ou retardar o envelhecimento oferece não apenas benefícios fisiológicos supostos, mas também um sentido de esperança e de agência sobre o próprio destino.
As estratégias que elevam esses alimentos ao status de panaceia repetem estruturas narrativas ancestrais: o “herói visionário” que descobre a verdade (seja um cientista ou um influenciador), o “vilão” que supostamente quer ocultá-la (a indústria farmacêutica, a medicina tradicional), e os testemunhos pessoais que funcionam como provas emocionais. Esse enredo, como um incrível levantamento histórico sobre o tema [1], é mais fácil de assimilar e mais emocionalmente satisfatório do que a ciência real, que opera com nuances, probabilidades e incertezas.
Além do apelo emocional, há também os vieses cognitivos que nos tornam vulneráveis. Tendemos a acreditar que se um evento positivo segue o consumo de um alimento (mesmo que por coincidência ou efeito placebo) isso prova sua eficácia. Esse “ilusionismo causal”, somado ao viés de confirmação, leva as pessoas a priorizar relatos pessoais e manchetes impactantes em vez de estudos robustos e demorados.
Assim, a panaceia no contexto da Nutrição é um símbolo cultural e psicológico que responde ao nosso medo da finitude, à rejeição do sofrimento e ao desejo de soluções simples para problemas complexos. O mito se reinventa: se antes eram elixires, pedras filosofais ou poções medicinais, hoje são sementes, óleos e extratos vendidos como “superfoods”.
Concluir que nenhum desses alimentos “entregou tudo o que prometeu” não significa desqualificá-los como parte de uma dieta saudável. O ponto central é reconhecer o padrão narrativo da panaceia que persiste, se atualiza e continua a moldar expectativas irreais sobre a nutrição. Somente ao enxergarmos esse padrão é que conseguimos escapar da armadilha das falsas promessas e construir uma relação mais crítica, equilibrada e realista com a comida – entendendo que a saúde não cabe em um único alimento, mas se constrói no conjunto de escolhas, contextos e relações que envolvem o ato de comer.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- Bacchi A. D. (2025). The Eternal Allure of the Panacea: How Narratives and Biases Sustain Pseudocures. The Journal of medical humanities, 10.1007/s10912-025-09971-4. Advance online publication. https://doi.org/10.1007/s10912-025-09971-4
- Pacheco, L., Li, Y., Rimm, E., Manson, J., Sun, Q., Rexrode, K., Hu, F., & Guasch-Ferré, M. (2022). Avocado Consumption and Risk of Cardiovascular Disease in US Adults. Journal of the American Heart Association: Cardiovascular and Cerebrovascular Disease, 11. https://doi.org/10.1161/JAHA.121.024014.
- Mahmassani, H., Avendano, E., Raman, G., & Johnson, E. (2018). Avocado consumption and risk factors for heart disease: a systematic review and meta-analysis.. The American journal of clinical nutrition, 107 4, 523-536 . https://doi.org/10.1093/ajcn/nqx078.
- Wang, L., Tao, L., Hao, L., Stanley, T., Huang, K., Lambert, J., & Kris-Etherton, P. (2019). A Moderate-Fat Diet with One Avocado per Day Increases Plasma Antioxidants and Decreases the Oxidation of Small, Dense LDL in Adults with Overweight and Obesity: A Randomized Controlled Trial. The Journal of Nutrition, 150, 276 – 284. https://doi.org/10.1093/jn/nxz231.
- Dreher, M., Cheng, F., & Ford, N. (2021). A Comprehensive Review of Hass Avocado Clinical Trials, Observational Studies, and Biological Mechanisms. Nutrients, 13. https://doi.org/10.3390/nu13124376.
- Probst, Y., Guan, V., & Neale, E. (2024). Avocado intake and cardiometabolic risk factors in a representative survey of Australians: a secondary analysis of the 2011–2012 national nutrition and physical activity survey. Nutrition Journal, 23. https://doi.org/10.1186/s12937-024-00915-7.
- Damani, J., Kris-Etherton, P., Lichtenstein, A., Matthan, N., Sabaté, J., Li, Z., Reboussin, D., & Petersen, K. (2025). Effect of Daily Avocado Intake on Cardiovascular Health Assessed by Life’s Essential 8: An Ancillary Study of HAT, a Randomized Controlled Trial. Journal of the American Heart Association: Cardiovascular and Cerebrovascular Disease, 14. https://doi.org/10.1161/JAHA.124.039130.
- Toscano, L., De Lima Tavares Toscano, L., Tavares, R., Da Oliveira Silva, C., & Silva, A. (2015). Chia induces clinically discrete weight loss and improves lipid profile only in altered previous values.. Nutricion hospitalaria, 31 3, 1176-82 . https://doi.org/10.3305/nh.2015.31.3.8242.
- Nieman, D., Cayea, E., Austin, M., Henson, D., McAnulty, S., & Jin, F. (2009). Chia seed does not promote weight loss or alter disease risk factors in overweight adults.. Nutrition research, 29 6, 414-8 . https://doi.org/10.1016/j.nutres.2009.05.011.
- Saadh, M., Abosaoda, M., Baldaniya, L., Kalia, R., Arya, R., Mishra, S., Chauhan, A., Kumar, A., & Alizadeh, M. (2024). The Effects of Chia Seed (Salvia hispanica L.) Consumption on Blood Pressure and Body Composition in Adults: A Systematic Review and Meta-analysis of Randomized Controlled Trials.. Clinical therapeutics. https://doi.org/10.1016/j.clinthera.2024.11.012.
- Clegg, M. (2017). They say coconut oil can aid weight loss, but can it really?. European Journal of Clinical Nutrition, 71, 1139-1143. https://doi.org/10.1038/ejcn.2017.86.
- Fais, G., Manca, A., Bolognesi, F., Borselli, M., Concas, A., Busutti, M., Broggi, G., Sanna, P., Castillo-Aleman, Y. M., Rivero-Jiménez, R. A., Bencomo-Hernandez, A. A., Ventura-Carmenate, Y., Altea, M., Pantaleo, A., Gabrielli, G., Biglioli, F., Cao, G., & Giannaccare, G. (2022). Wide Range Applications of Spirulina: From Earth to Space Missions. Marine drugs, 20(5), 299. https://doi.org/10.3390/md20050299
- Wu, Q., Liu, L., Miron, A., Klimova, B., Wan, D., & Kuča, K. (2016). The antioxidant, immunomodulatory, and anti-inflammatory activities of Spirulina: an overview. Archives of Toxicology, 90, 1817 – 1840. https://doi.org/10.1007/s00204-016-1744-5.
- Prete, V., Abate, A., Di Pietro, P., De Lucia, M., Vecchione, C., & Carrizzo, A. (2024). Beneficial Effects of Spirulina Supplementation in the Management of Cardiovascular Diseases. Nutrients, 16. https://doi.org/10.3390/nu16050642.
- Pingili, D., Awasthi, A., Maqsood, M., Devi, K., Rasagna, P., Bhagoji, S., Amminbavi, D., & Raju, M. (2023). Spirulina: A panacea for all human ailments. Annals of Phytomedicine An International Journal. https://doi.org/10.54085/ap.2023.12.1.39.
- Angeli, V., Silva, M., Massuela, D., Khan, M., Hamar, A., Khajehei, F., Graeff‐Hönninger, S., & Piatti, C. (2020). Quinoa (Chenopodium quinoa Willd.): An Overview of the Potentials of the “Golden Grain” and Socio-Economic and Environmental Aspects of Its Cultivation and Marketization. Foods, 9. https://doi.org/10.3390/foods9020216.
- Navruz-Varlı, S., & Sanli̇er, N. (2016). Nutritional and health benefits of quinoa (Chenopodium quinoa Willd.). Journal of Cereal Science, 69, 371-376. https://doi.org/10.1016/J.JCS.2016.05.004.
- Kiełb, A., Perkowska, K., Kaźmierczak, A., Izdebska, W., Sornek, P., Borkowska, A., Pawlak, I., Mich, A., Ciesielski, R., & Stanek, J. (2024). Apple cider vinegar in folk and modern medicine: a historical review and current scientific evidence.. Quality in Sport. https://doi.org/10.12775/qs.2024.21.54339.
- Górska, M., Kałuża, I., Golemo, J., Serkis, B., Dębińska, J., Celichowska, M., Dziuba, G., Bogoń, A., Ostojska, M., & Miazga, M. (2024). Apple Cider Vinegar in the Combat Against Type 2 Diabetes and Obesity – An Overview of Recent Research. Quality in Sport. https://doi.org/10.12775/qs.2024.20.53303.
- Launholt, T., Kristiansen, C., & Hjorth, P. (2020). Safety and side effects of apple vinegar intake and its effect on metabolic parameters and body weight: a systematic review. European Journal of Nutrition, 1-17. https://doi.org/10.1007/s00394-020-02214-3.
