
Trinta anos atrás, jogar videogame era, para muitos adultos, sinônimo de “perda de tempo” ou coisa de criança entediada no fim de semana. Hoje, é difícil encontrar alguém que nunca tenha jogado, seja um jogo de tiro complexo no computador ou uma partida casual de puzzle no celular enquanto espera o ônibus. A indústria dos games não só cresceu: ela se transformou em um mercado cultural robusto, influente e profundamente entrelaçado ao cotidiano.
O que antes era brincadeira virou profissão, espetáculo e identidade. Streamers acumulam milhões de seguidores e contratos publicitários. Competições de eSports lotam arenas. Grandes franquias, iniciadas nos games, dominam todo o tipo de produto. Balas do Mario, refrigerante do Pikachu, energético do Sonic e tantos outros exemplos…. E é justamente por estar tão presente na vida de crianças, adolescentes e adultos que o universo dos games não pode mais ser tratado como um simples entretenimento. Precisamos pensar em como esse entretenimento se faz presente na vida das pessoas e, se elas são nossos pacientes, como isso pode afetar o comportamento alimentar.
Ainda que seja um âmbito pouco estudado, algumas pesquisas muito interessantes investigam essa intersecção entre games e alimentação e trazem resultados que, no mínimo, nos convidam para a reflexão:
ANTES DE JOGAR: O QUE ACONTECE NAS LIVES DE GAMEPLAY?
Um estudo australiano [1] investigou como conversas sobre comida ocorrem em comunidades de streaming voltadas ao jogo “Fortnite”, com foco em jovens adultos (18–25 anos). Utilizando netnografia (método qualitativo que estuda interações e culturas em ambientes digitais), os autores acompanharam 11 streamers com mais de 2 mil seguidores, observando transmissões ao vivo, chats e redes sociais associadas (Discord, X, Instagram, YouTube).
Os resultados indicaram que discussões sobre comida estiveram presentes em 100% das lives observadas, sendo desencadeadas tanto por hábitos espontâneos dos streamers (comer durante as transmissões) quanto por interações com o público. As conversas envolveram majoritariamente alimentos ultraprocessados, como fast food e snacks industrializados.
Além disso, as relações entre seguidores e streamers mostrou-se um potencializador na influência sobre escolhas alimentares. Membros das comunidades relatam consumir alimentos similares aos exibidos nas lives ou recomendados pelos streamers. Em alguns casos, houve estímulo direto, seja por meio de promoções patrocinadas ou por identificação com o comportamento do influenciador.
Os autores reforçam, porém, que esses dados são bastante restritos (não sendo possível generalizar para além do público observado) – o que não torna o estudo menos interessante.
DEPOIS DAS LIVES DE GAMES: O IMPACTO DA LEMBRANÇA DE PROPAGANDA DE ALIMENTOS NOS COMPORTAMENTOS ADOLESCENTES
De forma bastante complementar, um estudo no Reino Unido [2] investigou como adolescentes reagem à exposição às propagandas de alimentos em plataformas de live streaming de videogames como Twitch, YouTube Gaming e Facebook Gaming. Utilizando modelagem de equações estruturais, o trabalho testou o modelo da “Hierarchy of Unhealthy Food Promotion Effects”, que descreve a cadeia entre exposição às propagandas, atitudes alimentares, comportamento de compra e consequências à saúde.
Os resultados mostraram que adolescentes com maior lembrança de anúncios de alimentos nessas plataformas relataram maior consumo e compra desses produtos. Essa relação foi mediada por atitudes mais positivas em relação a alimentos entendidos pelos pesquisadores como “não saudáveis”, mas não por normas sociais, preferências por marcas ou atitudes em relação aos alimentos entendidos como “saudáveis”.
O estudo apresentou uma evidência inédita sobre o efeito dessas plataformas especificamente na população adolescente, reforçando a hipótese de que a exposição a streamers promovendo alimentos influencia o comportamento alimentar.
Entre as limitações, destacam-se a ausência de medidas objetivas de consumo, a impossibilidade de controle por outras fontes de propaganda de alimentos, e a restrição geográfica. Ainda assim, os dados dão uma boa ideia sobre esse cenário de entretenimento e consumo.

JOGANDO, DE FATO: A INFLUÊNCIA DO TIPO DE JOGO NO COMER
Um estudo experimental [4] buscou entender se diferentes formas de entretenimento sedentário poderiam influenciar o estresse e a alimentação de homens jovens. Para isso, os autores compararam três grupos: um assistiu episódios da série Friends (controle), outro jogou FIFA 2013 (um jogo competitivo, mas sem violência), e o terceiro jogou Call of Duty: Modern Warfare 3 (um jogo de tiro em primeira pessoa com conteúdo violento). Todos os participantes eram gamers habituais, familiarizados com os dois jogos utilizados no estudo.
Os participantes, homens entre 18 e 30 anos, foram convidados a passar uma manhã no laboratório da University College London. Após um café da manhã padronizado, jogaram ou assistiram TV por uma hora. Ao final, puderam escolher livremente entre alimentos doces e salgados durante um período de descanso. Durante toda a sessão, os pesquisadores monitoraram sinais fisiológicos de estresse (como frequência cardíaca e pressão arterial), registraram a quantidade de comida ingerida e aplicaram escalas subjetivas de estresse e apetite.
Os resultados mostraram que, de maneira geral, os jogadores (dos dois tipos de jogo) apresentaram maior resposta de estresse em comparação com o grupo que apenas assistiu televisão — com aumento na pressão sistólica, na frequência cardíaca e nos relatos subjetivos de estresse. Essa diferença se manteve durante o período de descanso, mesmo após o fim da atividade. Apesar disso, os níveis de fome percebida não diferiram entre os grupos.
Mas o dado mais relevante surgiu quando se analisou o consumo alimentar: os participantes que jogaram Call of Duty comeram, em média, 208 calorias a mais que os que assistiram TV, com destaque para alimentos ricos em açúcar e gordura saturada. Esse grupo também consumiu significativamente mais alimentos doces em comparação aos outros. Já o grupo que jogou FIFA não apresentou diferenças significativas em relação ao grupo controle. Ou seja, embora o ato de jogar em si já pareça impactar o comportamento alimentar, o conteúdo violento do jogo pode potencializar esse efeito.
Importante destacar que os participantes não relatavam mais fome, nem desejo por doces (o aumento do consumo não foi consciente). Isso reforça a hipótese de que o estresse induzido por certas atividades pode levar à ingestão automática de alimentos altamente palatáveis, independentemente do apetite percebido.
Como todas pesquisas apresentadas, esta também tem limitações. A amostra era exclusivamente composta por homens jovens com sobrepeso, o que dificulta a generalização para outros grupos. O ambiente era controlado, a duração da intervenção curta (apenas 1 hora), e os alimentos oferecidos eram, em sua maioria, ultraprocessados – o que limita a interpretação sobre escolhas alimentares em contextos reais. De toda forma, os resultados apontaram para algo importante: nem toda atividade sedentária é igual, e nem todo videogame é igual.
E AGORA? COMO OS NUTRICIONISTAS PODEM ENTRAR NESSE UNIVERSO?
Os estudos apresentados até aqui apontam algo que muitos de nós, já sabemos: a imersão no mundo dos games pode limitar a variedade e a qualidade da alimentação, não por uma relação direta de “causar” más escolhas, mas por moldar rotinas, aumentar exposição a propaganda de determinados alimentos, inflar determinadas emoções e também gerar distração e reforçar padrões alimentares automáticos. Isso não significa, porém, que jogar videogame é algo “não saudável”. Longe disso.
Na contramão de discurso alarmista, alguns pesquisadores [5] propõem uma abordagem mais equilibrada e baseada em evidências mais amplas (para não olharmos somente a alimentação): jogos eletrônicos fazem parte da vida da maioria das crianças, adolescentes e adultos, e podem trazer benefícios reais em termos cognitivos, emocionais, motivacionais e sociais [6-8]. Esses benefícios variam de acordo com o tipo de jogo, a forma como se joga e o contexto em que o jogo está inserido. Em outras palavras, assim como acontece com a alimentação, o problema não está necessariamente no jogo, mas em como ele é vivido.
Cabe a nós, então, aprender a reconhecer e lidar com esse cenário com bastante pé no chão (e não tentar “corrigir” as pessoas pedindo que joguem menos). Para as crianças, isso pode significar conversar com os responsáveis sobre os jogos que estão sendo utilizados, sugerindo alternativas que estimulem resolução de problemas, cooperação e menor exposição a estímulos estressantes. Para adolescentes, pode ser útil discutir o papel dos streamers, das marcas e da cultura gamer na construção de hábitos. E para adultos, sejamos honestos: talvez seja mais eficaz adaptar o planejamento alimentar à rotina de jogos do que pedir para ele abandonar o jogo que o ajuda a relaxar, socializar ou simplesmente sentir prazer.
Não limitar o nosso poder de escuta, como nutricionista, sempre trará benefícios para o cuidado.
Podcast recomendado:
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- Micallef, D., Schivinski, B., Brennan, L., Parker, L., & Jackson, M. (2024). “What Are You Eating?” Is the Influence of Fortnite Streamers Expanding Beyond the Game?. Journal of Electronic Gaming and Esports. https://doi.org/10.1123/jege.2023-0033.
- Evans, R., Christiansen, P., Masterson, T., Pollack, C., Albadri, S., & Boyland, E. (2023). Recall of food marketing on videogame livestreaming platforms: Associations with adolescent diet-related behaviours and health. Appetite, 186. https://doi.org/10.1016/j.appet.2023.106584.
- Folkvord, F., & Van ’t Riet, J. (2018). The persuasive effect of advergames promoting unhealthy foods among children: A meta-analysis. Appetite, 129, 245-251. https://doi.org/10.1016/j.appet.2018.07.020.
- Siervo, M. et al (2018). Acute effects of video-game playing versus television viewing on stress markers and food intake in overweight and obese young men: A randomised controlled trial. Appetite, 120, 100-108. https://doi.org/10.1016/j.appet.2017.08.018.
- Granic, I. et al (2014). The benefits of playing video games.. The American psychologist, 69 1, 66-78 . https://doi.org/10.1037/a0034857.
- Alsaadi, B. et al (2022). Learning While Playing: Introducing Programming Concepts to Children in Minecraft. Int. J. Online Biomed. Eng., 18, 4-24. https://doi.org/10.3991/ijoe.v18i13.26451.
- Howe, A. (2022). Active Imagination and The Legend of Zelda: An Unlikely Source of Modern Mythology. Psychological Perspectives, 65, 436 – 445. https://doi.org/10.1080/00332925.2022.2138198.
- Hsieh, C., & Chen, T. (2019). Effect of Pokémon GO on the Cognitive Performance and Emotional Intelligence of Primary School Students. Journal of Educational Computing Research, 57, 1849 – 1874. https://doi.org/10.1177/0735633119854006.