
Já entendemos que o estigma relacionado ao peso não é apenas um reflexo sem consequências da cultura da dieta, ele é tem efeitos mensuráveis sobre a saúde física e mental. Manifestando-se de diversas formas – como comentários depreciativos, exclusão social, piadas, atendimento negligente e, mais sutilmente, por meio da insistência em padrões corporais sob o rótulo de “preocupação com a saúde” – ele é caracterizado pela desvalorização de uma pessoa com base em seu tamanho corporal. Uma vez internalizado, isto é, quando a própria pessoa passa a acreditar que seu corpo é errado, vergonhoso ou responsável por seus sofrimentos, os danos tornam-se ainda mais profundos.
Estudos associam o estigma internalizado ao desenvolvimento de sintomas depressivos, ansiedade, insatisfação corporal [1-3] e, de forma especialmente relevante para a prática nutricional, ao surgimento ou agravamento de comportamentos alimentares transtornados, como a compulsão alimentar [4-6].
A origem do estigma reside, hoje, em nossa cultura e suas manifestações são amplas: a mídia, os pares, os familiares. Mas uma das mais paradoxais e preocupantes é a atuação dos próprios profissionais de saúde. Ainda que bem intencionados, médicos, nutricionistas e outros profissionais podem, ao reiterar de maneira insistente a importância do “peso saudável”, alimentar sentimentos de inadequação, culpa e fracasso nos pacientes. Isso é ainda mais crítico em contextos de sobrepeso e obesidade, nos quais a abordagem centrada exclusivamente na perda de peso pode dar menos importância a outros aspectos fundamentais do cuidado.
Foi justamente este tópico que um estudo publicado este ano no Journal of Eating Disorders procurou explorar. Intitulado “The weight of stigma: pressures for a healthy weight from health professionals can predict binge eating symptoms through the mediation of internalised weight stigma” [7], o estudo investigou se a pressão por um peso saudável vinda de profissionais da saúde poderia estar associada ao aumento dos sintomas de compulsão alimentar. E mais: procurou entender se essa relação se dava por meio do estigma internalizado do peso. Com base em um modelo de mediação estatística, os pesquisadores buscaram desvendar esse caminho clínico e emocionalmente relevante.
Como se mede o peso da palavra?
Para investigar as possíveis conexões entre as falas dos profissionais de saúde e o sofrimento de seus pacientes, o estudo recrutou 114 participantes adultos atendidos em um serviço especializado em transtornos alimentares em Roma. Todos apresentavam sintomas de transtornos alimentares e tinham um IMC igual ou superior a 28 kg/m². A amostra era predominantemente feminina, com média de idade de 46 anos.
Os participantes passaram por uma avaliação presencial e responderam a um conjunto de instrumentos online. Esses instrumentos tinham como objetivo captar não apenas os comportamentos alimentares, mas também os aspectos mais sutis e subjetivos do sofrimento, como a percepção de pressão e a autocrítica corporal:
1. Escala de compulsão alimentar (Binge Eating Scale – BES)
Composta por 16 itens, essa escala mede a frequência e intensidade dos sintomas de compulsão alimentar. As pontuações obtidas indicam se a compulsão está ausente, é leve/moderada ou severa.
2. Escala de estigma internalizado do peso (Weight Bias Internalization Scale – WBIS)
Essa escala avalia até que ponto a pessoa aplica, a si mesma, estereótipos negativos sobre o peso. Itens como “Sou menos atraente do que outras pessoas por causa do meu peso” capturam sentimentos de vergonha, autodepreciação e inadequação. Quanto maior a pontuação, maior o grau de estigma internalizado.
3. Escala de influências socioculturais para o peso saudável (SITHS)
Essa escala procurou medir o quanto os participantes se sentem pressionados pelos profissionais de saúde para controlar o peso e os alimentos consumidos. Ao mesmo tempo avaliou-se a frequência com que os profissionais falam sobre alimentação saudável e controle de peso, sem indicar necessariamente uma cobrança. Essa distinção foi essencial: não é o conteúdo da fala, mas como ela é vivida que fez a diferença.

Os resultados do estudo
- A pressão percebida por parte dos profissionais de saúde previu sintomas de compulsão alimentar por meio do aumento do estigma internalizado.
- Exposição a discursos sobre peso saudável, por outro lado, não teve efeito significativo, nem direto nem indireto.
- O estigma internalizado atuou como mediador entre a pressão profissional e os sintomas de compulsão alimentar. Isso sugere que o problema está mais na forma “pressurizante” da comunicação do que no conteúdo do discurso sobre saúde e peso.
- IMC previu maior exposição a discursos sobre peso.
- Os mais jovens apresentaram maior estigma internalizado.
De forma clara, os pesquisadores apontaram que não é falar sobre alimentação saudável que causa dano, mas sim como essa conversa é percebida. A simples exposição a discursos sobre o chamado “peso saudável”, mesmo quando frequente, não esteve associada ao aumento dos sintomas de compulsão alimentar. O que esteve associado, com força estatística, foi a pressão percebida vinda dos profissionais de saúde.
Ou seja, o que adoeceu não foi o conteúdo, mas o modo como ele chega até o paciente. Palavras ditas com tom de cobrança, com a autoridade rígida de quem “sabe o certo”, com repetição e ênfase no peso como meta, podem gerar vergonha, frustração, autocrítica e, ao final, comportamentos alimentares transtornados. Exatamente o oposto do que se espera de um cuidado em saúde.
Vivemos em uma sociedade que ainda vê nutricionistas como figuras de vigilância: os que controlam, que julgam, que “não deixam” comer, que medem, pesam e corrigem. Esse imaginário social antecede o exercício da profissão e é exatamente esse imaginário que muitos estudantes carregam ao escolher cursar Nutrição. O desejo de controlar, de organizar corpos, de “consertar” hábitos, muitas vezes se mistura com o desejo de cuidar. Por essa razão, a principal mensagem do estudo não é apenas para os nutricionistas que “gostam de brigar”, mas também para os que se esforçam (demais) para cuidar, ainda em um modelo centrado no peso como objetivo universal.
Se você é nutricionista, talvez nunca tenha dito nada com a intenção de pressionar. Talvez acredite, com sinceridade, que está apenas incentivando hábitos saudáveis. Mas e se, mesmo sem perceber, a sua fala carrega um tom de exigência que o paciente escuta como cobrança?
O estudo vai além dos transtornos alimentares e nos convida a reconhecer que nossas palavras não são neutras e que não basta ter boa intenção. É preciso escutar mais, julgar menos, e repensar os “objetivos” que colocamos nas mãos dos pacientes. A ideia de “peso saudável” não pode ser um fim em si mesmo e muito menos um termômetro moral do progresso terapêutico.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
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- Nadglowski, J., Boza, C., Kyle, T., Rubino, F.et al. (2020). Joint international consensus statement for ending stigma of obesity. Nature Medicine, 26, 485 – 497. https://doi.org/10.1038/s41591-020-0803-x.
- Birney, S., Walsh, J., Coyne, R., Ryan, L., Conlan, O., Heary, C., Crotty, M., & Dunne, R. (2023). Weight stigma experienced by patients with obesity in healthcare settings: A qualitative evidence synthesis. Obesity Reviews, 24. https://doi.org/10.1111/obr.13606.
- Puhl, R., & Suh, Y. (2015). Health Consequences of Weight Stigma: Implications for Obesity Prevention and Treatment. Current obesity reports, 4(2), 182–190. https://doi.org/10.1007/s13679-015-0153-z
- Puhl, R. M., Wall, M. M., Chen, C., Bryn Austin, S., Eisenberg, M. E., & Neumark-Sztainer, D. (2017). Experiences of weight teasing in adolescence and weight-related outcomes in adulthood: A 15-year longitudinal study. Preventive medicine, 100, 173–179. https://doi.org/10.1016/j.ypmed.2017.04.023
- Jackson, S. E., Beeken, R. J., & Wardle, J. (2014). Perceived weight discrimination and changes in weight, waist circumference, and weight status. Obesity (Silver Spring, Md.), 22(12), 2485–2488. https://doi.org/10.1002/oby.20891
- D’Amico, M., Mocini, E., Frigerio, F. et al. The weight of stigma: pressures for a healthy weight from health professionals can predict binge eating symptoms through the mediation of internalised weight stigma. J Eat Disord 13, 95 (2025). https://doi.org/10.1186/s40337-025-01267-1