
Impacto da COVID-19 nas escolhas alimentares, ou falta dela
Como já conversamos em posts anteriores, tudo aquilo que comemos é determinado por uma série gigantesca de fatores dinâmicos que a depender do contexto em que estamos vão ter um peso maior ou menor na forma como julgamos e escolhemos algo para comer.
A pandemia de COVID-19 é um recente marco que chega e muda a quantidade e qualidade do consumo alimentar ao redor do mundo. E diante disso, não faltaram recomendações nutricionais de como adequar nossas escolhas alimentares neste novo cenário – de recomendações que vão desde as científicas e oficias, até as desnecessárias opiniões e influências imprudentes de oportunistas.
No meio dessa maré toda, você parou para refletir sobre o que levou tantas mudanças no consumo alimentar? Se antes de o quê comemos temos vários porquês, que porquês afetaram as preferências, prioridades e, principalmente, possibilidades na nossa alimentação com a pandemia?
O impacto nas escolhas alimentares
Para olhar para os determinantes de escolha alimentar, precisamos considerar o ambiente. E o ambiente global desses últimos 2 anos reflete uma situação na qual além de enfrentar a ameaça imediata à saúde pelo coronavírus, todos passamos também por ajustes abruptos em nossas rotinas e estilos de vida. Mudanças na forma de estudar, trabalhar, perdas de empregos, isolamento doméstico (que criou muito tédio e monotonia) e a total incerteza sobre a duração desse pesadelo coletivo.
Essas mudanças repentinas se manifestaram e continuam a se manifestar como estressores psicossociais e suas consequências (solidão, insônia, ansiedade, depressão) que influenciam fortemente mesmo hábitos alimentares já bem consolidados, colaborando para inapetências, o pular refeições, comer em exagero, mais beliscos em casa, comer noturno, etc. e, consequentemente, para como se dão as escolhas alimentares em cada uma destas situações.
COVID-19 e as escolhas alimentares, ou falta dela
Neste cenário de pandemia, quem não se pegou no dilema de como planejar as compras de alimentos, com idas ao mercado que agora precisam ser mais limitadas? Outros, optaram por compras online com delivery, mesmo pagando “o preço” da qualidade do que é escolhido por outro, especialmente para alimentos frescos.
Quem não viu casos de supermercados com prateleiras vazias porque as pessoas começaram a fazer grandes estoques de comida em casa? As escolhas passaram a ser cercadas por medos. Medo do fornecimento de alimentos, o que estaria ou não disponível, medo do preço aumentar. E o medo da falta de controle sanitário de determinados alimentos e de se infectar ao tocar alimentos ou embalagens? Medo de comer o preparado fora de casa. Medo do sedentarismo, de comer demais, preocupação com o peso corporal.1,2 Crenças de que certos alimentos podem proteger contra o vírus, influências sociais de todo mundo estar comprando esse tipo de alimento agora, “disseram ser bom nesse momento”, “especialistas estão dizendo que é bom comer isso agora”.
Não comer por não poder mais ir onde costumava comprar aquele alimento/refeição. Muitos passaram a optar por produtos de maior tempo de prateleira, até pela diminuição da frequência de ida às compras, o que consequentemente limita ter sempre opções mais frescas em casa e dá margem para escolhas mais convenientes.1,3
E sobre o momento refeições em casa? É preciso tempo (mesmo diante de uma rotina mais exaustiva para muitos), habilidades culinárias e criatividade para cozinhar. Ou contar com deliveries (seja pensando ou não nas condições de trabalho e exposição dos entregadores neste momento, em como a comida chega e como isso afeta o consumo).
Quem mora só nem sempre tem motivação pra preparar algo só pra si. Quem tem pouco repertório na cozinha facilmente “fica cansado”, “abusa” das suas próprias preparações e não sabe mais o que de diferente comer. Não ter quem dividir a tarefa de cozinhar em casa e se sentir sobrecarregado no que escolher e preparar para comer também tem sido comum. As refeições em família nem sempre são aquele mar de rosas e pode haver desconforto no aumento desses momentos.
Antes, preferia-se refeições fora de casa2, com colegas do trabalho/universidade/escola (até porque havia também mais variedade nos restaurantes destes lugares), e agora ter que comer em casa pode levar a escolhas mais rápidas, monótonas, ou um lanche que se leva para o quarto.
Como as escolhas alimentares impactam no dia a dia
Estudos europeus1,4,5 avaliando diretamente o que os participantes dizem ser importante para suas escolhas alimentares apontam que motivos de saúde, controle do peso e humor são aspectos que se tornaram mais importantes agora comparado a antes do lockdown.
O controle de humor está muito ligado a tentativa de lidar com o estresse emocional devido ao isolamento, as notícias e incertezas. Para olhar para saúde como importante determinante das escolhas alimentares, precisamos discutir primeiro o significado de saúde para os sujeitos.
Saúde seria não adoecer, não pegar o vírus? Seria sentir-se bem? Ter comportamentos alimentares considerados saudáveis? Ou seria “saúde” ligada meramente a preocupação com o ganho de peso, que aparece na liderança dos relatos?
Dados já no Brasil3 mostram que como as pessoas se sentem na pandemia influencia a qualidade da dieta. Aqueles com sentimentos positivos (tranquilidade, fé e confiança) melhoraram a qualidade da dieta, enquanto aqueles com sentimentos negativos (ansiedade, medo, exaustão mental e estresse) pioraram. E quanto ao maior tempo de exposição nas redes sociais e televisão que favorecerem o marketing e propaganda de produtos alimentares específicos, que passam a chamar mais atenção para o consumo?6
Podemos pensar também nas escolhas de quem está na linha de frente, ou trabalhando mais em qualquer outro setor que seja. O que uma rotina exaustiva os permite escolher, ou os pede que escolham para uns minutos de conforto? E quem pegou o vírus e teve alterações sensoriais? Ou perdeu alguém de quem dependia para refeições, ou a quem se remete memórias afetivas com diversas comidas, falta de apetite pelo luto… Bem amplo, né?
A COVID-19 e a falta destas escolhas
A pandemia de COVID-19 tem várias faces que pesam sobre as escolhas e consumo alimentar. Ao mesmo tempo que para alguns o maior tempo em casa, não gastar mais tempo no trânsito, ter uma flexibilidade maior nas horas de trabalho, etc. os ajudam a ter mais tempo para planejar suas refeições, se interessar por receitas mais tradicionais e prepara-las em casa; para outros os afazeres domésticos se acumulam, o trabalho fora de casa é essencialidade mínima, crianças com atividades remotas são uma demanda a mais.5 E para uma crescente parcela, isso se soma ao desafio básico de pelo menos ter ao algo a mesa!
E essa é uma parte indispensável desta reflexão: além de tudo que já vim escrevendo, esta pandemia é um grande desafio a nível de saúde pública por ampliar desigualdades sociais, raciais e de gênero já existentes no Brasil. O que compromete a garantia básica do Direito Humano a Alimentação Adequada e de Segurança Alimentar e Nutricional.
Assim, como falar de determinantes de escolha alimentar neste momento sem olhar para o avanço da insegurança alimentar no Brasil, frente aos desmontes de políticas de proteção social7 que ajudaram o país a sair do mapa da fome, mas que agora sofrem ameaças, em ambientes alimentares frágeis e não sustentáveis? Como não olhar para esta relação forçadamente intensificada nesta pandemia que tira o direito básico ao acesso aos alimentos, a falta de alimentação escolar, aumento do desemprego, sobrecarga doméstica, muitas pessoas dividindo a mesma moradia em habitações precárias, ouvindo de vários lados “fique em casa”, mas diante da necessidade de sair para tentar garantir pelo menos o mínimo para comer?
Neste sentido, é preciso lembrar dos determinantes socias da saúde que são indispensáveis ao considerar o que determina também as escolhas alimentares de grupos em maior vulnerabilidade. E minha pergunta é: como nutricionistas, estamos incluindo nos nossos discursos e práticas estes fortes determinantes de escolha alimentar, ou melhor, da falta de escolha, da falta do que comer, nestes grupos baixa renda, aqueles na informalidade, desempregados – que têm cor, gênero e endereço?
A pandemia de COVID-19 é mais um convite para que nosso olhar clínico e de pesquisa esteja alinhado às pluralidades das experiências dos sujeitos que permeiam as preferências, prioridades e possibilidades em cada escolha alimentar. Por isso, a reafirmação de ser complexo e de exigir de nós atuação holística, crítica e responsável.
Especial por:
Jéssica Maria Muniz Moraes
Referencias
1. Laguna L, Fiszman S, Puerta P, Chaya C, Tárrega A. The impact of COVID-19 lockdown on food priorities. Results from a preliminary study using social media and an online survey with Spanish consumers. Food Qual Prefer. 2020 Dec 1;86:104028.
2. Gómez-Corona C, Ramaroson Rakotosamimanana V, Sáenz-Navajas MP, Rodrigues H, Franco-Luesma E, Saldaña E, et al. To fear the unknown: Covid-19 confinement, fear, and food choice. Food Qual Prefer [Internet]. 2021 Sep [cited 2021 May 4];92:104251. Available from: https://doi.org/10.1016/j.foodqual.2021.104251
3. Tribst AAL, Tramontt CR, Baraldi LG. Factors associated with diet changes during the COVID-19 pandemic period in Brazilian adults: Time, skills, habits, feelings and beliefs. Appetite. 2021 Aug 1;163:105220.
4. Marty L, de Lauzon-Guillain B, Labesse M, Nicklaus S. Food choice motives and the nutritional quality of diet during the COVID-19 lockdown in France. Appetite. 2021 Feb 1;157:105005.
5. Snuggs S, McGregor S. Food & meal decision making in lockdown: How and who has Covid-19 affected? Food Qual Prefer [Internet]. 2021;89(November 2020):104145. Available from: https://doi.org/10.1016/j.foodqual.2020.104145
6. Rodrigues MB, Matos JDP, Horta PM. The COVID-19 pandemic and its implications for the food information environment in Brazil. Public Health Nutr. 2021;24(2):321–6.
7. Ribeiro-Silva R de C, Pereira M, Campello T, Aragão É, Guimarães JM de M, Ferreira AJF, et al. Covid-19 pandemic implications for food and nutrition security in Brazil. Cienc e Saude Coletiva. 2020;25(9):3421–30.