Você reparou que nos dois primeiros textos haviam mais perguntas do que respostas para os problemas apresentados? Isso se deve ao fato de que fazer um questionamento é talvez a melhor maneira de (re)construirmos algo.
Na Nutrição, fantasiamos que após prescrever um plano alimentar perfeito (com todos os cálculos de macro e micro nutrientes dentro dos parâmetros estabelecidos), o paciente irá retornar e contar que seguiu exatamente tudo que estava na dieta; perdeu peso, melhorou vários parâmetros de saúde e vivemos felizes para sempre… seria uma linda história. Provavelmente você já desejou isso (eu já), e muito provável, que também tenha se decepcionado várias vezes (quem nunca?).
O fato é que quando começamos a estudar o comportamento alimentar, entendemos que não faz o menor sentido esse ciclo de controle e obediência. Não comemos apenas por necessidades fisiológicas, aliás, isso seria muito sem graça. Nós cercamos a comida com vários rituais, crenças, atos culturais, sabedorias, emoções, pensamentos, sentimentos… uma lista que só faz sentido de acordo com as experiências individuais.
A atenção em saúde como conhecemos, se caracteriza por esse cuidado com o outro a partir de conhecimentos técnicos, mas que não se restringe somente a isso. Na verdade, não deveria haver essa limitação, pois o cuidar vai além.
Para começar, você sabe o que é cuidar? Cuidar é uma atitude de zelo, bom trato; é demonstrar interesse e dar atenção a algo ou alguém. O cuidado se efetiva em ações, mas também é uma forma de ser ou estar no mundo. Todos nós nascemos com potencial de cuidar e necessitados de cuidado.
Na Grécia antiga, Hipócrates (filósofo considerado o pai da medicina) destacava alguns pontos que foram sendo esquecidos ao longo do tempo. Nessa época, medicina, filosofia, psicologia e pedagogia pertenciam a um mesmo campo, denominado de artes da existência. O exercício dessas práticas tinha por essência o papel ativo dos ‘pacientes’ e a aplicação do conceito do cuidado de si.
O cuidado de si é descrito como um modo de viver no qual o indivíduo se ocupa de si mesmo, a partir de condutas racionais, autônomas e livres; exigindo de si um exercício diário de autoconhecimento cujo objetivo é a modificação de si, orientado por seus valores.
A complexidade do ser humano exige então que o cuidado ofertado vá além e extrapole a técnica, o modo de ser e estar durante uma consulta é o que irá determinar esse modelo de atuação. Nesse sentido, o ‘paciente’ ocupa uma centralidade no processo. Podemos compreender isso a partir da importância de uma relação horizontal baseada na confiança ou o que chamamos de aliança terapêutica entre profissional e paciente, facilitando o processo de cuidado do outro.
Cuidado este que não parte do que o profissional acredita, mas sim, do que é importante para o paciente, como seus valores, objetivos, crenças, vivências e etc., isso porque cada ser humano é um universo único.
Por qual motivo insistimos em criar protocolos rígidos de atendimento? Nós já padronizamos e normatizamos muitas coisas, entre elas: as necessidades nutricionais; os parâmetros bioquímicos; o peso; as porções alimentares; e claro, o modelo de alimentação saudável.
A passividade não é uma característica interessante no processo, à medida que aumenta, maiores são as chances de os indivíduos serem negligentes no tratamento, terem recusas e não serem cooperativos. Qual a vantagem de o paciente ser subordinado a nós e nos obedecer, se, durante o processo ele precisa ser o agente central?
Se a partir de hoje retornarmos a esse conceito (e prática) do cuidado de si, precisamos iniciar com nosso próprio cuidado. Todo ser humano tem questões que atingem sua existência, e nós nutricionistas não estamos imunes a nada, inclusive às questões relacionadas a comida e ao corpo. Não é à toa que muitos estudantes e profissionais são um importante grupo de risco para desenvolverem transtornos alimentares.
Há duas práticas fundamentais e pessoais para nos tornarmos profissionais do cuidado: fazer terapia e criar a cultura da supervisão de casos (a psicologia tem muito a nos ensinar). Afinal, estar bem consigo mesmo é o primeiro passo para estar mais inteiro com o outro.
Já na prática clínica, o cuidado se revela em uma interação singular que busca a intimidade, a sintonia e uma relação de igualdade e parceria. Você sai da posição de especialista e se coloca vulnerável, não mais detentor de todo o saber, pois a pessoa a sua frente é a maior especialista de si mesma; vocês têm saberes diferentes, e a sua função é estimular a capacidade de cada pessoa para que ela produza sentido, construa seu próprio caminho. Nesse caminhar, a aderência ao acompanhamento virá naturalmente. Spoiler: nós só cuidamos daquilo que amamos, empatia é fundamental nesse modelo.
Michel Foucault filósofo e médico afirmava que as práticas de cuidado racionais e intencionais, que visam dar forma, que não servem apenas para determinar regras de conduta, mas para promover uma modificação de si mesmo seriam como criar uma obra de arte. Cada ser humano pode e deve ser o artista principal de sua obra, e nós podemos fazer do nosso trabalho essa arte que, ao invés de tentar consertar as pessoas, objetiva o cuidar integral. Ah, e cuidado também significa cura! Não se trata de curar doenças, mas de ampliar os sentidos e significados tornando a vida uma obra de arte, sem se enquadrar em padrões, em todas as definições de saúde ou saudável. Afinal, a vida valiosa começa em atitudes diárias, o extraordinário se encontra no ordinário.
Série especial por Marcela Villela