
Comer e nutrir, em busca de novos significados. Para os antropólogos, comer é uma atividade humana fundamental, seja pela necessidade e frequência cotidiana, seja porque o ato de comer pode representar o modo pelo qual uma sociedade pensa e expressa sua relação com o mundo. Isso significa dizer que comemos porque precisamos sobreviver, física e simbolicamente.
Mas sabemos também que as pessoas não comem qualquer coisa: comem aquilo que aprenderam a conhecer, aquilo que faz sentido em suas vidas e que definem seus rituais alimentares.
As escolhas em relação à comida estão vinculadas à representações alimentares pré-existentes, relacionadas ao grupo cultural de origem, aos aprendizados familiares, a novos desejos e anseios, a fases da vida (biológica ou social), a medos e fobias, tabus e pré-conceitos.
Ao comer segundo uma forma socialmente definida, interiorizamos valores de um grupo e expressamos visões de mundo e conflitos. Mostramos que somos sujeitos, que interpretamos o mundo e negociamos com ele.
Comer e nutrir: Teoria e prática do comer
Seres humanos simbolizam o mundo. Isso significa dizer que olhamos o mundo e atribuímos significado às coisas que nos rodeiam. Por isso mesmo diferenciamos:
- O que pode ser comestível do que consideramos ser comestível
- O que deve ser comido daquilo que queremos comer
- O que é correto comer daquilo que precisamos comer simbolicamente
- O que vem de fora do sistema alimentar daquilo que está afetivamente dentro
- O pensamento teórico sobre a comida das sensações do ato de comer
- O prescrito por médicos, nutricionistas e influencers do não dito pela vergonha ou pelo medo.
Diferenciamos a teoria sobre a comida – as regras, o que aprendemos que “deve ser feito”, daquilo que fazemos de verdade.
Por isso a importância de entender e relacionar a alimentação a um sistema maior chamado vida real. Nesse sentido, falar de comida não é só falar de alimentos, ingredientes, combinações, substituições, receitas e comportamentos frente ao que se come. Falar de comida é compreender e discutir descompassos, desencontros históricos, econômicos, culturais.
É preciso estar atento ao zeitgeist, o espírito do tempo, para que a relação entre sistemas alimentares e seres humanos possa, de fato, fazer sentido.
No mundo em que vivemos, a comida (e a pessoa que come) devem ser pensadas a partir da relação com angústias contemporâneas, tais como:
- Individualismo
- Hiperconectividade
- Aceleração do tempo
- Envelhecimento populacional
- Excesso de informação
- Gênero
- Crescimento das cidades
- Novas formas de trabalho
- Individualismo
A essas questões acrescenta-se outra camada, que chamamos de questões estruturais mas que também ajudam a delinear as identidades humanas: grau de escolaridade, formas familiares, região, política, desigualdade, renda, religião e visão de futuro.
Para falar sobre comida precisamos entender processos mais amplos, que não são necessariamente alimentares. Estamos falando de estar sempre atento para:
- Angústias econômicas e socioculturais
- Mudanças e transformações (pessoais, culturais e históricas)
- Decisões humanas e não humanas
- Problemas do meio ambiente (naturais ou culturais)
- Diferenças na percepção de sabores e na aquisição de técnicas
- Diferenças nos repertórios alimentares
- Diferenças nos significados atribuídos à comida e ao ato de comer
- Diferenças nos significados de nutrir e comer.
Precisamos conhecer, entender e dialogar com as diferenças.
Diferenças não são superficiais, não são dados frios e distantes.
Diferenças dizem respeito às maneiras pelas quais seres humanos vivem seus dilemas existenciais, sejam eles relacionados ao corpo, à mente, ao espírito.
Para falar sobre alimentação com alguém deveríamos saber primeiro o quê e como essa pessoa pensa.
O que considera bom ou ruim?
Que experiência alimentar ela traz?
Que tabus, medos e receios habitam seu universo?
O que a comida significa no seu mundo?
Quais os significados do corpo dentro do seu grupo?
Nutrição, saúde e bem estar, que querem dizer para pessoas diferentes?
Só assim acessaremos verdadeiramente o mundo do outro, deixando que nossa experiência alimentar seja apenas uma, mais uma entre tantas outras possíveis.
Para entrar na lógica alheia é preciso antes despir-se da nossa, reconhecer a ignorância, aceitar o inaceitável, acolher o imponderável.
Especial por:
*Paula Pinto e Silva, mestre e doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo – USP. Professora de Antropologia na ESPM – SP (MBA em Ciências do Consumo), professora convidada da Casa do Saber e da Escola N.
Especializada no tema Antropologia e Alimentação, é autora de Farinha, feijão e carne seca. Um tripé culinário no Brasil colonial (Senac, 2005), organizadora do livro Arte de Cozinha de Domingos Rodrigues (Senac, 2008) e diversos artigos sobre o assunto, publicados em jornais e revistas de grande circulação, tais como:
https://claudia.abril.com.br/saude/comida-nao-bula-antropologa-paula-pinto/
https://revista451.com.br/conteudos/visualizar/Somos-todos-caipiras
É membro fundadora do C5 – Centro de Cultura Culinária Câmara Cascudo, entidade sem fins lucrativos que tem como principal objetivo pesquisar e difundir a culinária brasileira, a partir de um olhar renovador e criativo. Desde os anos 2000 dedica-se à pesquisa sobre a relação entre Antropologia e Consumo, tanto do ponto de vista teórico como do ponto de vista aplicado.