Por que trabalhar com as sensações internas de fome e saciedade?
Tradicionalmente, é ensinado ao nutricionista cálculos bastante precisos para determinar as necessidades nutricionais de um indivíduo. Sabemos hoje o que seria o ideal de calorias a serem ingeridas e também de diversos micronutrientes. Todavia, mesmo quando se busca a especificidade considerando o sexo e a idade, ignora-se as percepções do indivíduo sobre o seu próprio corpo.
Mas o que são as sensações internas de fome e saciedade?
Antes de chegar na questão do porque trabalhar com as sensações internas de fome e saciedade, vale pontuar os conceitos de interocepção, exterocepção e propriocepção.
A interocepção é a sensação do funcionamento dos principais sistemas de órgãos do corpo e de seu estado interno, ou seja, viscerais; mas vai além: é uma construção do sistema nervoso central, que reflete a comunicação do sistema nervoso periférico com o cérebro e tem impacto além dos aspectos homeostáticos – podendo ser um gatilho comportamental emocional, cognitivo e de autoconsciência. Daí vem também sensações de dor, prazer.
A exterocepção é a sensação da interação direta do mundo externo com o corpo, sentido pelos órgãos do sentido, com destaque para tato, sensação térmica, percepção de dor. E a propriocepção é a sensação de si próprio, percepção dos estímulos, a capacidade de reconhecer o corpo no espaço.
Assim, o meio interno e o externo proporcionam uma grande variedade de sensações, que são percebidas graças ao nosso sistema nervoso e aos nossos órgãos dos sentidos1,2.
O que isto tem a ver com comer?
Nós comemos por várias razões e já escrevemos sobre isto aqui antes, mas o principal guia deveria ser nossa fome, guiada por nossas sensações. Falamos em internas, para sairmos dos guias externos para comer – como as regras aleatórias das dietas restritivas – ou regras dos outros. Claro que a hora, local, companhia nos influenciam, mas precisamos aprender a honras nossa fome e sentir a saciedade – princípios do Comer Intuitivo.
Esta percepção, sobre a necessidade de ingestão de alimentos é inata, ou seja, nascemos com a habilidade de distinguir quando estamos com fome e quando estamos satisfeitos (com uma incrível capacidade de autorregulação energética3) e ao longo da vida vamos aprendendo a ignorar tais sensações para nos adequar a horários de almoço e outras situações curiosas que compõe o comportamento humano.
Uma questão importante é prestar atenção a estas sensações, uma vez que estamos hoje muito desconectados de nós – e conectados à mídia, redes sociais, etc. Por isto também é importante atentar – e estudar hoje – consciência interoceptiva – Nossa capacidade de sentir o que está acontecendo em nosso corpo4,5.
Como usar as sensações internas de fome e saciedade no atendimento nutricional?
Obviamente não é papel do nutricionista recomendar ao seu paciente que trabalha em um escritório para se rebelar contra o horário do almoço e dizer ao seu chefe às nove e meia da manhã de uma segunda-feira “Até mais, estou indo almoçar”, entretanto resgatar as sensações internas durante o horário das refeições é um exercício não só de reconexão com o próprio corpo, como também uma via para a mudança de comportamento.
Todo nutricionista já ouviu em algum momento de um paciente: “eu preciso de um papel dizendo exatamente o que e quanto eu devo comer, acho mais fácil e vou conseguir seguir” – o que resgata um aprendizado de uma vida inteira sobre a obediência. Neste âmbito da vida, contudo, a rigidez não mostra resultados6. E se há uma demanda de se basear em alguma coisa para comer ou deixar de comer, há uma oportunidade de retomar a capacidade de perceber as sensações internas, confiando quando o corpo dá sinais de fome e também quando dá sinais de satisfação.
Enquanto não inventam um relógio capaz de detectar tais sinais, cabe ao nutricionista trabalhar com exercícios que ajudem os indivíduos a perceberem os indícios de seus corpos. Um jeito simples de começar é pedir à pessoa que eleja um alimento neutro (que ela não ame, nem odeie) para usá-lo como base de comparação para a ausência ou presença de fome. Na prática, supondo que este alimento eleito seja uma laranja, no momento de dúvida sobre a própria fome pensa-se na laranja, se mentalmente ela parece uma boa opção para comer, é muito provável que o indivíduo esteja com fome, mas se por acaso, naquele momento, a laranja não parece interessante para ser ingerida, talvez a fome não esteja tão proeminente ainda.
Em momentos mais avançados de um acompanhamento, o odômetro da fome pode ser uma opção (ferramenta disponível em detalhes em nosso curso de Capacitação em Nutrição Comportamental), ou mesmo a meditação da água (exercício apresentado como um bônus do novo curso “Comer Intuitivo”).
No fim, o que será mais importante é o preparo prévio do nutricionista e a sua gama de possibilidade, já que não existe um jeito certo de se trabalhar com estas questões, e os diferentes contextos pedirão diferentes condutas – para mudanças saudáveis, duradouras e realistas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- Tsakiris M, Critchley H. 2016 Interoception beyond homeostasis: affect, cognition and mental health. Phil. Trans. R. Soc. B 371: 20160002. http://dx.doi.org/10.1098/rstb.2016.0002
- Connell L, Lynott D, Banks B. 2018 Interoception: the forgotten modality in perceptual grounding of abstract and concrete concepts. Phil. Trans. R. Soc. B 373: 20170143. http://dx.doi.org/10.1098/rstb.2017.0143
- Fomon SJ. Nutrititon of normal infants. St Louis, MO: Mosby-Yearbook; 1993.
- Simmons, W. K., & DeVille, D. C. (2017). Interoceptive contributions to healthy eating and obesity. Current opinion in psychology, 17, 106-112.
- Alvarenga M, Figueiredo M, Palacow V. Consequências da restrição para o comportamento alimentar. In: Alvarenga M, Figueiredo M, Timerman F, Antonaccio A, organizadoras. Nutrição Comportamental. ed. Barueri: Manole; 2019.
Especial por Nutrição Comportamental