No futuro, a foto de perfil será suficiente para a avaliação nutricional?
A utilização de faces para a determinação do estado nutricional de um indivíduo não é uma ideia futurista e já faz parte da nossa realidade. Na contramão de tudo o que acreditamos sobre uma visão integral da saúde dos indivíduos e suas relações com a comida, há alguns anos já estão sendo desenvolvidos algoritmos que têm por objetivo estabelecer um método de estimação do Índice de Massa Corporal (IMC) por meio de proporções faciais, que recebe o nome “Face-to-BMI”, “rosto para o IMC”.
O método chamou atenção após o economista Pavlo Blavatskyy ganhar o prêmio IgNobel de economia em 2021 com a pesquisa “Obesity of politicians and corruption in post-Soviet countries” (“Obesidade de políticos e corrupção em ex-repúblicas soviéticas”, em tradução livre). Segundo os idealizadores do IgNobel, cujo o nome é uma brincadeira com a palavra ignóbil (sem nobreza) e o tradicional prêmio Nobel, o objetivo da premiação é usar pesquisas improváveis para “fazer rir e depois pensar”. Então, quais reflexões que este trabalho traz para a nutrição?
No futuro, o reconhecimento facial revelará o estado nutricional?
Em seu estudo, Blavatskyy estima o IMC e classifica o estado nutricional por meio de métodos descritos por Wen & Guo (2013) e aprimorados por Kocabey et al. (2017). Tais trabalhos são os primeiros a propor o uso de softwares de reconhecimento facial para uma estimação do IMC, a ser utilizada para uma posterior classificação do estado nutricional dos indivíduos.
Desenvolvidos por profissionais da engenharia computacional, o “Face-to-BMI” se baseia em estudos de psicologia que relacionam a percepção humana de características faciais e a noção subjetiva de saúde para justificar a sua elaboração e desenvolvimento. Tal informação se mostra relevante para entendermos que, em sua origem, o “Face-to-BMI” não tem embasamento em mecanismos do metabolismo lipídico e o acúmulo de gordura facial, mas sim em estudos subjetivos da percepção de alguns indivíduos sobre os rostos e a saúde de outras pessoas.
Com grandes bancos de dados que possuíam foto do rosto, sexo, peso e altura, buscou-se estabelecer uma relação matemática entre todas essas variáveis e diversas proporções faciais. E enquanto o trabalho de 2013 permitia tal estimação somente com fotos “3X4”, o de 2017 já permitia o uso do algoritmo em fotos “poluídas”, ou seja, com diferentes fundos e com o indivíduo em diferentes posições.
Figura 01: Exemplos de aplicações do “Face-to-BMI”. Extraído e adaptado de Wen & Guo (2013).
A precisão da ferramenta, porém, ainda está muito aquém do esperado. Devido à baixa proporção de imagens de pessoas com obesidade ou baixo peso nos bancos de dados de base, o erro médio da estimação para estes grupos de indivíduos ainda é extremamente alto. Reconhecendo tais limitações, os autores são bastantes responsáveis ao dizer que a ferramenta não deve ser utilizada em nível individual, mas a disponibilizam para estudos populacionais.
Entretanto, mesmo em estudos populacionais, é necessário um fundamento muito bem estabelecido para justificar a utilização do método sem estimular interpretações equivocadas pelos indivíduos. Afinal, como é amplamente discutido entre nutricionistas, o IMC não está entre os indicadores mais precisos de saúde, mesmo quando calculado com métodos tradicionais, quiçá quando é estimado por um método que ainda precisa de melhorias.
O caso do ganhador do IgNobel é bastante peculiar pois o autor apresenta a obesidade entre políticos como um possível indicador de corrupção, em alternativa a métodos ainda mais estranhos que buscavam associação com corrupção no volume de importação de relógios suíços. Apesar de ter sido encontrada uma associação entre obesidade e corrupção entre aqueles países, a justificativa de relação entre as variáveis é insipiente, os métodos não são validados e não é possível inferir causalidade. No final das contas esses dados acabam encontrando mais serventia na reflexão que eles promovem do que em aspectos práticos de fato.
O desenvolvimento humano e tecnológico se dá de uma forma extremamente desordenada, e quando surge algo que se relaciona de alguma forma com a nossa atividade, como nutricionistas, é o nosso papel nos aprofundarmos um pouco no assunto para estarmos preparados para quando formos questionados e também para prever possíveis desdobramentos. Neste caso, considerando o histórico bizarro de soluções para o emagrecimento que surgem todos os anos, não será surpresa nenhuma se uma “dieta baseada nas características faciais” surgir. Ao mesmo tempo que, quando estiver bem estabelecido e com menores possibilidades de erro, o “Face-to-BMI” poderá ser o cerne de pesquisas promissoras em nível populacional, inclusive em redes sociais.
Assim, reconhecendo que uma abordagem comportamental individualizada jamais poderá ser reduzida em algoritmos e tendo senso crítico na hora de analisar os novos estudos, encontramos um equilíbrio que nos permite encarar qualquer novidade.
SOBRE O AUTOR:
Felipe Daun é nutricionista, mestre e doutorando pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP), com experiência na capacitação de graduandos em nutrição e nutricionistas em comunicação em saúde.
REFERÊNCIAS
Blavatskyy, P. Obesity of politicians and corruption in post-Soviet countries. Econ Transit Institut Change. 2020;00:1–14. https://doi.org/10.1111/ecot.12259
Kocabey, E., Camurcu, M., Ofli, F., Aytar, Y., Marin, J., Torralba, A., & Weber, I. (2017). Face-to-BMI: Using computer vision to infer body mass index on social media. In Proceedings of the International AAAI Conference on Web and Social Media (ICWSM). Montreal, Canada. (Palo Alto, CA: AAAI Press)
Wen, L., & Guo, G. (2013). A computational approach to body mass index prediction from face images. Image and Vision Computing, 31, 392–400. https://doi.org/10.1016/j.imavis.2013.03.001