A pandemia como um fator de modificação do comportamento alimentar, o que estudos revelam sobre a alimentação da população durante o período.
Nossas aulas de história sobre grandes epidemias, por melhor que fossem os professores, não conseguiram nos dar qualquer vislumbre do que seria vivenciar uma. A pandemia de COVID-19 ainda está, diariamente, influenciando nossas atitudes e sentimentos, pois enquanto a campanha de vacinação avança, também avançam descobertas de novas variantes do vírus. Em diferentes contextos e realidades, neste mesmo cenário instável, encontramos pessoas otimistas e confiantes, enquanto outras mais vulneráveis, ansiosas e preocupadas. Não precisamos de estudos científicos para dizer que essas diferentes vivências desencadeadas pelo COVID-19 impactaram em nosso comportamento alimentar, mas o que dizem os estudos sobre como atitudes e sentimentos durante a pandemia mudaram a alimentação?
Um olhar crítico para enxurrada de artigos científicos sobre a alimentação na pandemia
Não é exagero dizer “enxurrada”, afinal as principais plataformas indexadoras a de publicações acadêmicas apontam cerca de 170 mil artigos científicos sobre o vírus COVID-19 publicados até julho de 2021, dos quais 10 mil, aproximadamente, abordam a alimentação de alguma forma. Em meio a tanta informação, é necessário saber interpretar os trabalhos de forma adequada, olhando não só para resultados e conclusões, mas principalmente para os métodos.
Um estudo conduzido com 5896 pessoas em 17 países africanos encontrou um consumo referido de frutas e legumes 8% maior durante a pandemia1. Ao mesmo tempo, um estudo realizado em Hong Kong com 724 indivíduos identificou um aumento de apenas 2% do consumo destes grupos de alimentos em sua população2. Todavia não podemos dizer que os africanos aumentaram mais o consumo de frutas em relação aos moradores de Hong Kong, pois o estudo africano foi realizado com uma coleta online não aleatorizada e sem um cálculo amostral definido, enquanto o estudo de Hong Kong definiu previamente uma amostra aleatorizada e representativa de sua população.
Dadas as restrições impostas pela própria pandemia, é muito difícil encontrar estudos que tenham obedecido rígidos critérios de amostragem e seleção de indivíduos que nos permita dizer que os resultados refletem o que de fato acontece em uma determinada população, ou mesmo rigorosos métodos de coleta conduzidos prospectivamente por profissionais treinados em ambientes controlados, mas isso não significa que não podemos utilizar essas informações em nosso cotidiano, mesmo que sejam fruto de questionários online com grupos limitados de indivíduos. Enquanto o estudo de Hong Kong apresenta uma estimativa da realidade de sua população, o estudo africano apresenta um conjunto de possíveis mudanças nos hábitos alimentares de alguns indivíduos daqueles países.
Dentre os trabalhos que buscaram ampliar a investigação do “o que mudou” para “porque mudou”, analisando as atitudes e sentimentos por trás do consumo, encontramos alguns resultados interessantes ao redor do mundo, que nos mostram algumas possíveis vias entre o impacto emocional da pandemia de COVID-19 e a alimentação, mas não necessariamente as frequências representativas dessas ocorrências.
Assim, um estudo italiano com 437 jovens adultos observou que, durante a pandemia, houve uma maior busca por comida motivada por sentimentos de medo, ansiedade, solidão e tédio3. Dados que se assemelham com achados de um trabalho realizado com universitários norte-americanos, que associou a ansiedade gerada pelo COVID-19 com maior apetite e busca por alimentos4.
Já na América Latina, uma pesquisa realizada no Peru, durante um período de severo lockdown, destacou que os indivíduos mais estressados por conta desta situação referiram maior ganho de peso5. No Chile, um estudo realizado em uma determinada comunidade universitária identificou uma relação significativa entre o sofrimento emocional gerado pelas questões econômicas e de saúde relacionadas a pandemia com o consumo de frituras, bebidas açucaradas, doces e snacks6. Mas e no Brasil?
Um estudo brasileiro sobre a influência de atitudes e sentimentos na alimentação durante a pandemia
Pesquisadoras da UNICAMP publicaram um estudo cujo o objetivo foi identificar fatores associados com mudanças positivas e negativas no padrão alimentar7. Já havíamos comentado sobre este trabalho em nossa publicação sobre o impacto da pandemia em nossas escolhas alimentares , e aqui vamos explorar um pouco mais sobre a pesquisa.
Um questionário online, validado internamente, foi divulgado em diversas redes sociais e listas de e-mails da universidade e obteve 4780 retornos elegíveis para o estudo. As pesquisadoras utilizaram um índice já estabelecido para avaliar mudanças na “qualidade da dieta”, qualificando as alterações ou manutenções de consumo de determinados grupos de alimentos em um padrão “positivo” ou “negativo”. O padrão positivo foi aquele onde houve manutenção ou aumento do consumo de alimentos in natura e refeições frescas preparadas a partir destes alimentos. Enquanto o padrão negativo foi aquele onde houve manutenção ou aumento do consumo de refeições congeladas e produtos prontos para o consumo como doces, salgadinhos e bebidas açucaradas.
Tais padrões de consumo foram considerados como o desfecho de interesse, sendo verificada a sua associação com diversas exposições, dentre as quais os sentimentos vivenciados durante a pandemia e também algumas atitudes relacionadas a alimentação.
Cozinhar foi uma questão bastante importante levantada na pesquisa que resultou em dados estatisticamente significantes que diferenciaram os padrões de consumo. As alegações “não sei cozinhar”, “não tenho tempo para cozinhar” e “não tenho apoio para cozinhar” foram mais presentes entre aqueles que pioraram a qualidade de alimentos consumidos durante a pandemia. Enquanto que um maior aumento do tempo dedicado ao preparo dos alimentos foi associado com a melhora da qualidade dos alimentos consumidos.
Em relação aos sentimentos vivenciados durante a pandemia, as associações encontradas foram ainda mais significativas. “Ansiedade”, “estresse”, “exaustão mental” e “medo” foram mais referidos pelo grupo que piorou a qualidade dos alimentos consumidos, sendo que relatar cada um desses sentimentos negativos representou uma chance 10% menor de variar a alimentação positivamente durante a pandemia. Enquanto “paz de espírito”, “confiança” e “fé” foram sentimentos 2,5 vezes mais relatados pelo grupo onde houve melhora dos alimentos consumidos e o relato dos mesmos foi associado com uma chance 30% menor de apresentar uma piora na qualidade da alimentação.
Na prática, o que tudo isso significa e como trabalhar essas informações no cotidiano?
Dada as características dos estudos, não podemos afirmar, com certeza, que a pandemia afetou as atitudes dos indivíduos de uma determinada forma “X”, que por sua vez influenciou a alimentação de forma “Y”. Em meio a tantas informações, algumas que se encontram e outras que se contradizem, o que enxergamos são possibilidades, as quais trazemos para a nossa realidade para tentar explicar os eventos observados por nós, seja em nosso atendimento com o público, seja em nossas próprias pesquisas.
Deste modo, caso um paciente relate em um atendimento, por exemplo, que tem se sentido mais ansioso e ao mesmo tempo refira que aumentou o consumo de alimentos industrializados prontos para consumo, você já teve tempo para preparar a sua abordagem para esta situação, pois alguns estudos evidenciaram que esta era uma via correlacionada. Mas se por acaso você observar algo diferente disso, não significa que seja uma exceção ou um “comportamento fora da curva”, pois ainda não foi possível realizar estudos que representem de fato a nossa população.
E no âmbito acadêmico, todos esses trabalhos com pequenos focos de observação são fundamentais para orientarem novas investigações: mais aprofundadas em determinadas situações para averiguar melhor algumas vias que se destacaram; ou ainda mais amplas, mas com pontos de análise mais precisos e fundamentados, permitindo então uma melhor estimação de como a pandemia afetou a alimentação da população.
Depois de um ano e meio, ainda não podemos afirmar quando a pandemia de COVID-19 irá terminar, mas as suas consequências ainda serão duradouras, e talvez algumas até permanentes. Após a consolidação dos nutricionistas como profissionais da saúde, essa talvez seja a primeira vez que um evento teve a capacidade de mudar como as pessoas comem em âmbito global, e nós temos a responsabilidade de buscar as melhores formas de lidar com isso, desde o nosso pequeno núcleo até o âmbito de políticas públicas, para evitar ao máximo as consequências adversas.
Especial por:
Felipe Daun é nutricionista, mestre e doutorando pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP), com experiência na capacitação de graduandos em nutrição em comunicação em saúde.
Referências bibliográficas:
- Abouzid M, El-Sherif DM, Eltewacy NK, et al. Influence of COVID-19 on lifestyle behaviors in the Middle East and North Africa Region: a survey of 5896 individuals. J Transl Med. 2021;19(1):129. Published 2021 Mar 30. doi:10.1186/s12967-021-02767-9
- Wang J, Yeoh EK, Yung TKC, et al. Change in eating habits and physical activities before and during the COVID-19 pandemic in Hong Kong: a cross-sectional study via random telephone survey. J Int Soc Sports Nutr. 2021;18(1):33. Published 2021 Apr 28. doi:10.1186/s12970-021-00431-7
- Guerrini Usubini A, Cattivelli R, Varallo G, Castelnuovo G, Molinari E, Giusti EM, Pietrabissa G, Manari T, Filosa M, Franceschini C, Musetti A. The Relationship between Psychological Distress during the Second Wave Lockdown of COVID-19 and Emotional Eating in Italian Young Adults: The Mediating Role of Emotional Dysregulation. Journal of Personalized Medicine. 2021; 11(6):569. doi:10.3390/jpm11060569
- Smith KR, Jansen E, Thapaliya G, et al. The influence of COVID-19-related stress on food motivation. Appetite. 2021;163:105233. doi:10.1016/j.appet.2021.105233
- Agurto HS, Alcantara-Diaz AL, Espinet-Coll E, Toro-Huamanchumo CJ. Eating habits, lifestyle behaviors and stress during the COVID-19 pandemic quarantine among Peruvian adults. PeerJ. 2021;9:e11431. Published 2021 May 11. doi:10.7717/peerj.11431
- Salazar-Fernández C, Palet D, Haeger PA, Román Mella F. The Perceived Impact of COVID-19 on Comfort Food Consumption over Time: The Mediational Role of Emotional Distress. Nutrients. 2021; 13(6):1910. doi:10.3390/nu13061910
- Tribst AAL, Tramontt CR, Baraldi LG. Factors associated with diet changes during the COVID-19 pandemic period in Brazilian adults: Time, skills, habits, feelings and beliefs. Appetite. 2021;163:105220. doi:10.1016/j.appet.2021.105220
(a) Levantamento realizado em 15 de julho de 2021 nas plataformas “Scopus” e “PubMed”.