Covid-19 e o Isolamento Social impactam o Comportamento Alimentar. Você sabe como? Em dezembro de 2019 o mundo conhecia um vírus que mudaria rotas e planos e seria responsável por isolar bilhões de pessoas em suas casas. De forma abrupta, uma nova maneira de habitar esse planeta foi apresentada, de trabalhar, de se divertir, de se relacionar e claro, de comer.

O Covid-19 e o Isolamento Social alteraram nosso Comportamento Alimentar, como?

Se voltarmos para março de 2020, a incerteza do abastecimento de alimentos era algo que rondava nossas fantasias. As pessoas iam menos ao mercado e estocavam mais. Foi o estranho caso das pilhas de papel higiênico nas casas, freezers e despensas abarrotadas. Para muita gente, disponibilidade exagerada de comida é sinônimo de perda de controle.

Um estudo com aproximadamente 1000 pacientes norte americanos e holandeses com transtorno alimentar autorreferido, mostrou piora significativa de episódios de compulsão alimentar em pacientes com Bulimia Nervosa e Transtorno de Compulsão Alimentar durante a pandemia.1

Comida virou companhia, passatempo, hobby. Os pacientes angustiados diziam só pensar nisso, não encontrar outra forma de lidar com a solidão, com o tédio. Eu validava-os dizendo que sim, na pandemia a novidade vinha de motoboy.

Com o passar dos meses, a população que tinha acesso a comida foi percebendo que as prateleiras não ficariam vazias do dia para a noite. Uma recomendação nutricional de um grupo de pesquisadores italianos de abril de 2020, inclusive dizia que muitas pessoas provavelmente teriam bastante o que comer em casa, que não haveria motivo para correr aos mercados, uma vez que tais estabelecimentos continuariam abertos ao longo de toda quarentena.2

Inegavelmente, o outro lado da moeda também é verdadeiro. Pessoas com histórico de restrição alimentar autoimposta também se viram enclausuradas em seus próprios medos e solidão. Durante a pandemia, pacientes com diagnóstico de Anorexia Nervosa relataram receio em manter o plano alimentar proposto no tratamento de forma consistente e aumento da restrição alimentar.1
Ainda, nos vimos engolidos pelas telas, principalmente pelas redes sociais pautadas no ideal de magreza, cultura da dieta e antagonicamente lotada de propagandas de comida. O uso exagerado de tais plataformas é associado ao risco aumentado de comportamentos de transtornos alimentares.3

Covid-19 e Comportamento Alimentar,  um relato um tanto pessoal

Em uma quinta-feira do mês de junho de 2020 acordei com uma dor de cabeça intensa seguida de dores corporais, febre e cansaço forte. Alguém muito próximo do meu convívio tinha positivado para Covid há exatos 7 dias o que já me garantia a certeza de ter contraído o dito-cujo.

Inicialmente, o mais incômodo é, de fato, o conjunto de sintomas gripais e claro, o medo de virar um número nas estatísticas apresentadas nos jornais. Aliás, caso receba um teste positivo para Covid, aconselho a não assistir aos noticiários por uns dias, é uma aflição visceral. Mas algo muito peculiar dessa doença é a forma como ela mexe na nossa capacidade de sentir os cheiros e se relacionar com a comida.

Para discutir tal hipótese, um estudo aplicou um questionário multilíngue em pouco mais de 4 mil participantes de 41 países (incluindo Brasil) com diagnóstico de Covid, cujo objetivo era avaliar o olfato, paladar e quimestesia, antes e durante a doença.4 Quimestesia é nossa capacidade de detectar sensações quimicamente desencadeadas, como o sabor picante, e a refrescância.
Quase 80% dos participantes tiveram redução na capacidade olfativa, 69% redução no paladar e 37% na quimestesia. Um dado interessante é que a obstrução nasal não foi responsável pela redução/perda olfativa.4

Esse fato é bastante curioso, seu nariz está aparentemente ótimo, mas não detecta vinagre ou queijo gorgonzola. Lembro de buscar incessantemente algum cheiro, qualquer um, como na música de Arnaldo Antunes que diz, “socorro, alguém me dê um coração que esse já não bate nem apanha, por favor, uma emoção pequena, qualquer coisa, qualquer coisa que se sinta, tem tantos sentimentos, deve ter algum que sirva”.

Com o olfato alterado, automaticamente o paladar também fica miúdo, não como em uma gripe tradicional, é diferente. O apelo do sabor gostoso dos alimentos já não me chamava. Pensava nos pacientes com desinteresse pela comida.

Um dia estava com vontade de comer um hambúrguer. Pedi e alguém deixou na minha porta. Quando dei a primeira mordida (aquela mais deliciosa), o sabor conhecido (e esperado) não veio. A suculência e a textura sim, mas o gosto não. Tentei mais algumas, mas nada, só frustração. É uma sensação constante de que você comeu, mas ao mesmo tempo não comeu. Como se um plástico bem fino tivesse sido implantado na mucosa da boca.

Estranhamente a comida passa a ter função fonte de nutrientes, e para alguém que gosta muito de comer, fica uma sensação de que faltou algo no dia. Sim, faltou o prazer.

Em relação ao olfato, esse vai voltando aos pouquinhos. De novo o vinagre e o queijo gorgonzola eram meus guias, fazia testes algumas vezes por dia. Canela também é um bom. Entretanto, os cheiros ruins voltaram com uma outra cara. O lixo, o rio Pinheiros e o banheiro público tinham cheiro de cebola misturada com alguma erva (lembrava macela) azeda. No estudo supracitado, raros foram os casos de parosmia (perversão do olfato).4

Mais uma mudança esquisitíssima que também alterou a forma como eu me relacionei com a comida, já que alho e cebola sempre foram a base dos meus temperos. Mesmo assim, o cheiro ruim = cebola era diferente do cheiro de cebola em si. Sim, não faz sentido, mas a sensação era essa.

Dez meses se passaram desde o meu diagnóstico de Covid, mas a parosmia continua aqui. Percebo que vem diminuindo, os cheiros ruins estão ganhando mais cores além da cebola e macela. Ou será que eu estou me acostumando com essa nova realidade?

Gostaria de lembrá-los de que esse é um relato puramente pessoal, cada um apresenta e vivencia os sintomas e a doença de forma diferentes.

Covid-19, Isolamento Social, impactos no Comportamento Alimentar, Como os nutricionistas podem olhar para esse novo desafio?

Está claro que os atendimentos terão desafios, e assim como já escrevemos anteriormente, teremos novos desafios que tais mudanças poderiam representar na prática clínica dos nutricionistas. Como lidar com a mudança no comportamento alimentar imposto pela pandemia e pelo vírus em si?
Talvez essa resposta seja construída ao longo dos próximos meses. Como primeira sugestão, pensaria em uma investigação nos pacientes que já tiveram diagnóstico de Covid-19, explorando a fundo como foi passar pela doença, o que aconteceu com seu olfato, paladar, como os sintomas foram vivenciados, como ficou a relação com a comida. Se reparou que algo mudou e ainda não voltou.

Para tal, reservar um pedaço da anamnese para isso pode ser interessante, sempre preferindo perguntas abertas, possibilitando ao paciente realmente falar sobre. Também, não é incomum a vivência de uma “estranheza” pós Covid (como o meu caso da cebola e macela). Caso o paciente comente, sugiro não se espantar ou fazer alarde, ele pode sentir que não deveria ter contado.
Além das questões alimentares, vale apurar como esse paciente ficou após a recuperação, em termos de humor, qualidade de sono, fadiga, consumo de álcool, capacidade de foco e concentração – sintomas do chamado “Covid longo”5. Nós não, necessariamente, trataremos essas questões diretamente, mas a comunicação com outros membros da equipe – psicólogos, psiquiatras, clínico – pode ajudar melhor o paciente.

Em relação aos comportamentos decorrentes da clausura, do isolamento, temos um grande desafio. A ausência de prazos nos apresenta a necessidade de tentar reproduzir o mundo dentro de nossas próprias casas, mais ou menos como a personagem Joy do filme “O quarto de Jack” faz com seu filho. No enredo, mãe e filho são mantidos em cativeiro, um quarto minimamente equipado cuja noção do filho de mundo é apenas este quarto, uma vez que ele nasceu dentro dele e nunca saiu.

O esforço para manter uma rotina alimentar é crucial, assim como os momentos de pausa e descanso. Para muitos, o home office extrapolou limites de horas de trabalho, o que intensifica a exaustão, fadiga e para alguns, aumento do comer emocional, ou seja, o comer em resposta às emoções e não fome fisiológica ou apetite. Nesses momentos, explore com o paciente possibilidades de lazer dentro de casa. Novos hobbys podem ser descobertos!

Muitos estudos estão saindo sobre os efeitos de longo prazo dos recuperados de covid, tudo indica que ainda teremos muitas surpresas. Por enquanto, abra sua escuta para aqueles pacientes que relatarem mudanças no comportamento alimentar após contraírem Covid-19, validando-os e explorando como contornar tais novidades.

Especial por:

Manuela Capezzuto, Nutricionista formada pela USP, aprimorada em Transtornos Alimentares pelo AMBULIM-HC-FMUSP, integrante da equipe do Projeto em Atendimento Ensino e Pesquisa em Transtornos Alimentares na Infância e Adolescência (Protad)/ AMBULIM – IPQ-HC-FMUSP, membro do GENTA.

Referências:

Termorshuizen, J. D., Watson, H. J., Thornton, L. M., Borg, S., Flatt, R. E., MacDermod, C. M., Harper, L. E., van Furth, E. F., Peat, C. M., & Bulik, C. M. (2020). Early impact of COVID-19 on individuals with self-reported eating disorders: A survey of ~1,000 individuals in the United States and the Netherlands. The International journal of eating disorders, 53(11), 1780–1790. https://doi.org/10.1002/eat.23353

Muscogiuri, G., Barrea, L., Savastano, S., & Colao, A. (2020). Nutritional recommendations for CoVID-19 quarantine. European journal of clinical nutrition, 74(6), 850–851. https://doi.org/10.1038/s41430-020-0635-2

Rodgers, R. F., Lombardo, C., Cerolini, S., Franko, D. L., Omori, M., Fuller‐Tyszkiewicz, M., … & Guillaume, S. (2020). The impact of the COVID‐19 pandemic on eating disorder risk and symptoms. International Journal of Eating Disorders, 53(7), 1166-1170.

Parma, V., Ohla, K., Veldhuizen, M. G., Niv, M. Y., Kelly, C. E., Bakke, A. J., … & Hayes, J. E. (2020). More than smell—COVID-19 is associated with severe impairment of smell, taste, and chemesthesis. Chemical Senses, 45(7), 609-622.

Raveendran, A. V., Jayadevan, R., & Sashidharan, S. (2021). Long COVID: An overview. Diabetes & Metabolic Syndrome: Clinical Research & Reviews.

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