Me ofereceram uma tarefa hercúlea! Explicar neste texto a relação entre Psicanálise a Nutrição, sobre os conceitos de transferência e contratransferência. Como nutricionistas podem se beneficiar dele?

Apesar de os conceitos de transferência e contratransferência derivarem de alguns conceitos muito complexos da Psicanálise, tentaremos nesse texto simplificar esses fundamentos para que você consiga utilizá-los em sua prática! Vamos lá?

 

Psicanálise: como se organiza o aparelho psíquico?

Para começar, a Psicanálise foi a ciência fundada por Sigmund Freud, no fim do século XIX em Viena. Ela pode ser considerada um “método de tratamento”1, ou uma prática interpretativa. Ou seja, um “óculos” colorido pelo aparato teórico da psicanálise, sendo uma forma de entender e escutar o mundo: fenômenos, situações, acontecimentos, mitos, contos, filmes, etc.

São muitos os conceitos da psicanálise. A grande sacada de Freud foi organizar o nosso mundo mental como aparelho psíquico, ou seja, com um funcionamento próprio, assim como nossos outros sistemas: circulatório, digestório, etc.

O aparelho psíquico abarca 3 instâncias ou sistemas:

  1. Consciente;
  2. Pré-consciente;
  3. Inconsciente

Para exemplificar este funcionamento, imagine que os sistemas têm “lugares virtuais” (lugares hipotéticos) e elementos que o compõe. Estes elementos são as marcas psíquicas criadas pelas nossas percepções, tanto endógenas quanto exógenas. Diz-se que o aparelho tem um ponto de vista econômico, já que lida com cargas, intensidades. Ou falando de outra forma, existem forças que se equilibram e impulsionam a vida mental.

 

Como essa estrutura impacta a prática analítica?

A prática psicanalítica, ou a análise, leva em conta todo esse arcabouço teórico. E a partir dele, estabelece-se um conjunto de técnicas que propiciam a prática analítica. Como por exemplo, o divã, a frequência das sessões, o pagamento. Tudo isso emoldura a análise, por isso é chamado de setting terapêutico. Fábio Herrmann (p.23) 2 diz que o setting serve para sustentar e delimitar a prática clínica.

Dessa forma, o aparelho psíquico funciona com alguma ordem. Tem lugares, sistemas, regras, cargas, afetos e ideias. É como um complexo maquinário, sendo um destes sistemas o inconsciente. Vamos a ele:

 

O inconsciente 

O fio condutor da psicanálise é a noção de inconsciente. O inconsciente não é, como muitos pensam, um limbo ou um lugar meio bagunçado do não-consciente. Existem leis que regem o inconsciente e as modalidades de suas manifestações, tais como sonhos, sintomas, atos falhos, lapsos.

Freud fala que os sonhos são uma forma de expressão do inconsciente e visam a realização de um desejo reprimido. Portanto, se todos sonhamos, todos temos inconsciente.

Uma das leis do inconsciente é a atemporalidade, ou seja, o inconsciente não conhece tempo ou cronologia. O que aconteceu no passado ou hoje não importa. Tem igual carga afetiva. O que importa é que está no inconsciente como uma representação, e afetivamente funciona como se tivesse acabado de acontecer.

E este é exatamente o ponto crucial para entendermos o conceito da transferência!

 

A transferência 

A transferência pode ser entendida como um deslocamento para o presente de uma situação emocional vivida anteriormente com um objeto (lembrando que para a psicanalise objeto pode ser uma pessoa, até si próprio!) e reatualizada com um novo objeto, diferente do original. Lapalanche e Pontalis (p. 514)3 a definem como a repetição de protótipos infantis vivida com um sentimento de atualidade acentuada.

Freud percebe o fenômeno da transferência na sua relação com o outro. Inicialmente, com seus pacientes, mas depois em sua autoanálise. Podemos, então, concluir que o fenômeno da transferência é universal. Acontece sempre na nossa relação com o outro, e por isso extrapola o trabalho analítico. Acontece nas relações interpessoais, incluindo na relação do nutricionista com seu paciente.

 

Como a transferência pode impactar seus atendimentos?

A transferência no setting analítico, portanto, é o processo pelo qual modos de relacionamento ou desejos inconscientes se atualizam na figura do analista.

O que pode ser transferido? Padrões de comportamento, tipos de relação de objeto, sentimentos, afetos, fantasias, conjunto de imagos – que é o “protótipo inconsciente de personagens, ou seja, a forma como o sujeito apreende o outro”3.

Freud percebeu que é a relação do sujeito com as figuras parentais que é revivida na transferência, principalmente a ambivalência característica desta relação. Minerbo4, entende a transferência com a forma de ser e de sofrer da criança-no-adulto. É nesse sentido que o inconsciente é atemporal, como citado anteriormente.

 

Exempificando a situação transferencial

Imagine que uma paciente diz que você quer que ela engorde, que tudo o que fala aponta para isso (o exemplo poderia ser emagrecer também, aliás, ambas as situações já me aconteceram inúmeras vezes). Gostaria de deixar claro aqui, para uma melhor compreensão, que acredito que o analista não pode ter desejo algum sobre o peso dos pacientes. Então, emagrecer ou engordar, para o trabalho analítico, não é e nem pode ser fator, ou pior ainda seria, condição de trabalho. Tanto que deixo isso claro logo nos primeiros atendimentos.

Pois bem, digamos que você recebe a fala desta paciente e trabalha com ela a questão, escutando ativamente e entendendo a história dela e os tipos de relações estabelecidas ao longo de sua vida. Será que era você quem a via assim e exigia isso dela? Como isso se relacionava com a história dela e com suas relações parentais?

Era um deslocamento de conteúdos, uma repetição de um protótipo relacional vivido com a mãe que estava sendo ali reeditado na situação analítica, no aqui e agora da sessão. Ela tinha sempre um sentimento premente de não ser aceita, de ser rejeitada, do desejo que ela fosse diferente, ou outra pessoa.

 

Então, como lidar com a transferência?

Como disse Daniel Legache5, na transferência o paciente age (atua) ao invés de rememorar. A situação analítica, devido ao setting, ao rigor e à constância, favorece e torna a transferência como uma especificidade da situação analítica. E será trabalhada e manejada de forma técnica.

Porém, acredito que em certo sentido, a transferência é um fenômeno que ultrapassa o setting analítico e pode ser observada em múltiplas relações. Uma delas é a relação nutricionista/paciente.

Ou seja, muitas vezes vocês receberão conteúdos (afetos, sentimentos) dirigidos a vocês. Mas é uma transferência. Então, tenham o cuidado de reconhecer o fator, e não o levem de forma pessoal. Tentem perceber se aquilo não está no lugar de algo. Percebam se o paciente não está transferindo a você algo que é da experiência emocional dele.

 

A contratransferência 

Já a contratransferência é o conjunto de reações inconscientes do analista à pessoa do paciente e, mais particularmente, à transferência deste.3 A contratransferência quando bem utilizada serve como uma bússola para o analista, dando direcionamento sobre o mundo interno dos pacientes.

Dito de forma muito simples, é como se o paciente, num movimento inconsciente, fizesse o analista experimentar afetos ou posições tais como ele (paciente) o sente.

Costumo dizer que os pensamentos, sentimentos e fantasias que temos na presença dos nossos pacientes, podem nos dizer muitos sobre eles. Por exemplo, com algum paciente você pode experimentar uma intensa impotência e menos valia. Se estes forem sentimentos e pensamentos que você não costuma ter, na presença dos seus pacientes, e que lhe parecem estranhos, tente perceber se não é um tipo de movimento do paciente e se não é ele que se coloca como incapaz.

Já percebeu como não conseguimos pensar ou temos nossa capacidade criativa inibida quando se trata de alguns pacientes? Alguns deles podem nos fazer experimentar sensações corporais, como sono, dor de barriga, tontura. E, então, basta o paciente sair que estes incômodos físicos ou psíquicos se esvaem. Se você já experienciou este tipo de situação, há uma grande chance de ser um movimento de contratransferência.

 

É necessário prestar atenção nestes aspectos durante a consulta para que não interfira negativamente em seu atendimento nutricional ou relação com seu paciente. Espero que esclarecendo um pouco estes conceitos, você possa aprimiorar suas relações profissionais!

 

Especial por Patricia Gipsztejn Jacobsohn. Psicóloga, psicanalista e professora. Mestre em Psicologia Clínica pela Puc/SP. Coordenadora da Ceppan (Clínica Cybelle Weinberg de Estudos e Pesquisas em Psicanálise da Anorexia e Bulimia).

 

No curso de Capacitação em Nutrição Comportamental, temos uma aula específica sobre este tema com Patrícia, acreditamos que nutricionistas possam melhorar muito sua capacidade terapêutica se entenderem melhor estes conceitos!

 

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Referências:

  1. FREUD, Sigmund. Princípios básicos da psicanálise: 1913. In: Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia: o caso Schreber; Artigos sobre técnica e outros textos: 1911-1913. 2010. p. 268-276.
  2. Herrmann, F. (2015). O que é psicanálise: para iniciantes ou não... Editora Blucher.
  3. Laplanche, J., & Pontalis, J. B. (1998). Projection. Vocabulaire de la psychanalyse.
  4. Minerbo, M. (2020). Transferência e contratransferência. Editora Blucher.
  5. Brück, C., & McLean, K. (1993). THE ANALYTICAL” DEVICE,” MACHINE AND DISCOURSE. Dispositio18(45), 45-51.

 

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