Bom, agora que já sabemos o que caracteriza a Ortorexia Nervosa (ON), vamos entender a relevância de se discutir esse tema entre nós, nutricionistas. O primeiro, parece óbvio: temos papel fundamental na identificação e “tratamento” desse comportamento disfuncional. Porém, nossa atuação precede o mesmo, já que ela pode ser ponto importante para “proteger” ou “favorecer” tal comportamento. Além disso, configuramos um grupo de risco, e vou explicar por quê.
Primeiramente, é fundamental que tenhamos conhecimento do quadro para identificar traços ou o próprio comportamento ortoréxico em nossos pacientes, a fim de não normalizar esse comer disfuncional – mesmo na vigência dos modismos no contexto alimentar do momento, que muitas vezes valoriza, reforça e dissemina essas ações. Nosso olhar precisa ser cuidadoso, pois o que o paciente come, muitas vezes vai de encontro com o que é preconizado, e é exatamente por isso que o comportamento ortoréxico pode ser ignorado ou até endossado, considerando que o indivíduo pode desenvolvê-lo até mesmo na tentativa de seguir recomendações – de guias alimentares, por exemplo – ao levar essas recomendações a um grau extremo. Portanto, estando atentos e críticos sobre as consequências físicas e psicossociais dessas atitudes, poderemos então auxiliar com um cuidado que convide a desconstrução do conceito ou a prática de “alimentação saudável” disfuncional desse paciente.
É também nosso papel prevenir o quadro. Uma atuação baseada na medicalização da alimentação, no modelo prescritivo, punitivo e com visão somente biológica do comer, pode contribuir para o desenvolvimento do comportamento ortoréxico. Como a nutricionista Marcela Villela trouxe na série de textos anterior, precisamos rever nossa atuação controladora, para que não sejamos agentes promotores da preocupação excessiva e/ou obsessiva com a qualidade da alimentação, pois nessa tentativa de promover um hábito alimentar saudável pautada por coerção e punição, possivelmente reforçaremos tais comportamentos. Sendo assim, é nosso papel promover o comer “mais saudável” sob uma abordagem biopsicossocial, tendo clareza no conceito do que de fato é verdadeiramente saudável no contexto da alimentação de cada indivíduo.
Por fim, gostaria de deixar um ponto de atenção: o nosso próprio cuidado. Alguns estudos têm demonstrado que nutricionistas e estudantes de nutrição apresentam alta frequência de ON. Essa relação poderia ser resultado da nossa própria formação, onde a temática saúde-doença-alimentação é reduzida ao viés biológico. Além disso, podemos estar susceptíveis ao desejo de servir como um “modelo” de alimentação saudável e adequada para a sociedade, o que também poderia reforçar o comportamento ortoréxico.
Até que se chegue a um consenso em relação a ON, não podemos negar a existência de tais comportamentos e de como podemos atuar de forma responsável no cenário atual, – onde esse comer disfuncional pode ser considerado como “saudável” – considerando a abordagem da Nutrição Comportamental.
Série especial por Gabriela Takeda @gabrielatakeda.nutri
Nutricionista e Mestranda em Nutrição em Saúde Pública pela FSP- USP
Referência:
Martins M, Alvarenga MS, Takeda G. Ortorexia Nervosa. IN: Alvarenga MS, Dunker KLL, Philippi ST. Transtornos Alimentares e Nutrição – da prevenção ao tratamento. São Paulo: Manole, 2020. Pp 83-150.